Na sexta-feira passada, 3 de Junho, já tinha escrito e enviado a minha crónica semanal quando, inesperadamente, recebi a notícia do falecimento do Cónego João Seabra. Acrescentei, à dor pela sua partida, as minhas preces pela sua alma, na esperança de que já lhe tenha sido concedido o prémio prometido aos servos bons e fiéis.

Como acontece quando morre uma figura pública, surgiram em catadupa os comentários sobre o insigne cónego da Sé Patriarcal. Todos, creio, elogiosos, da sua pessoa e do seu imenso trabalho pastoral, mas em alguns não faltou uma infeliz referência ao seu alegado mau feitio. É muito despropositada uma tal referência num momento destes, mas é também uma mentira e uma injustiça, que requer reparação.

Não vou entrar na corrida dos que, agora, presumem amizade com o Padre João. Ele dizia, com graça, que Deus sabe de todos, cada um sabe de si e ele sabia de uns quantos…

Conhecemo-nos em 1985, quando oficiou o casamento da minha irmã Mariana com o meu cunhado Manuel. Depois de me licenciar em Direito, em Madrid, e de ter estudado Filosofia e Teologia no Seminário internacional da prelatura do Opus Dei, em Roma, regressei a Lisboa. O Padre João, que sabia do meu percurso, interessou-se por mim e estivemos à conversa. Mas foi sobretudo depois da minha ordenação sacerdotal, em 1986, que o nosso contacto se intensificou.

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Recordo alguma vez ter ido à Universidade Católica, para falar com ele, que aí era capelão: no breve trajecto até ao bar da Universidade, onde fomos tomar um café, foram tantas as pessoas que interpelou que fiquei positivamente admirado pelo modo como conhecia aquela juventude universitária, em que deixou tão profundas marcas.

Certamente por indicação sua, substituí-o como conselheiro eclesiástico da Lugar-Tenência da Ordem do Santo Sepulcro de Jerusalém em Portugal. Também foi em sua substituição que celebrei, no respectivo aniversário, a missa de sufrágio pelas vítimas do regicídio, tendo eu, desde então, assegurado este encargo, que também dele herdei.

Foi ao Cónego João Seabra que pedi que apresentasse, no Círculo Eça de Queiroz, um meu livro-entrevista sobre os sete pecados capitais. Já não se encontrava bem e, por isso, teve de ir acompanhado a essa sessão, em que nos brindou uma excelente reflexão. No dia seguinte, como manda o protocolo, agradeci-lhe a amabilidade da sua presença e a erudição das suas palavras, ao que respondeu, com a simpatia do costume: ‘Sabes que sou teu amigo e que gosto de dizê-lo!’.

Não se pense, contudo, que o Padre João Seabra concordava com tudo o que eu dizia, ou escrevia, mas, quando discordava, dizia-o com a mesma simplicidade. Há poucos anos, quando presidi a uma Eucaristia em que ele, e um outro cónego da Sé Patriarcal, concelebraram, senti-me na obrigação de me desculpar por ocupar, por insistência de ambos, essa presidência, que a eles, mais do que a mim, obviamente, competia. Ao referir-me ao Cónego João Seabra, já então bastante debilitado, disse que lhe estava grato sobretudo pela sua lealdade, porque sempre que achava que me devia fazer algum reparo, fazia-o com toda a franqueza e amizade. Já na sacristia, comentou-me, com aquele seu ar divertido: ‘Também não foram assim tantas as vezes que discordei de ti!’. A que respondi, com agradecida sinceridade: ‘Menos do que as que devia, Padre João!’.

Podia contar mais episódios, mas estes chegam para provar a sua delicadeza e amizade. Mau feitio?! De modo nenhum porque, se tinha alguns repentes mais enérgicos, era por razão do seu amor apaixonado a Cristo e à Igreja, a sua forte personalidade, nunca por defeito ou irascibilidade. Do Padre João Seabra, certamente, não se podia dizer o que o Espírito Santo disse, há dois mil anos, da Igreja de Laodiceia e que agora se poderia dizer também de não poucos eclesiásticos: “conheço as tuas obras, que não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente. Mas, porque és morno, nem frio nem quente, vou vomitar-te da minha boca” (Ap 3, 15-16).

Com efeito, o Cónego Seabra era um resistente e um combatente, não um tíbio que dissesse sempre o que os outros queriam ouvir, nem o que era mais politicamente conveniente. Alguns escandalizaram-se com esse seu modo de ser tão frontal, mas não era também assim Jesus de Nazaré?! Será que, à conta das suas invectivas contra os fariseus, ou à expulsão, a golpes de azorrague, dos vendilhões do templo, devemos também supor que Cristo tinha mau feitio?!

Foi talvez há já mais de vinte anos que um dia, passando à frente da Igreja de Nossa Senhora da Encarnação, ao Chiado, tive a sorte de encontrar, à porta, o Cónego João Seabra. Depois de nos cumprimentarmos com a afabilidade habitual, perguntei-lhe por um então recém-nomeado Bispo auxiliar de Lisboa. Respondeu-me com a sua graça habitual: ‘É óptimo, porque é um bispo que sabe o que é um padre!’. Depois, tive a picardia de lhe perguntar quando chegaria a sua vez de ascender ao episcopado… O Padre João respondeu, de imediato, que isso não era para ele, mas que se fosse, seria um excelente bispo! Até já tinha escolhido um lema episcopal: ‘In humilitate, superius!’. Ou seja: em humildade, o máximo!

Rimo-nos ambos com aquela sua divertida ocorrência e, de facto, não chegou a bispo. Talvez a culpa tenha sido – digo-o sem ironia – a sua excessiva humildade, porque era, com efeito, excessivamente humilde para fazer carreira eclesiástica. Se fosse mais soberbo e, sobretudo, calculista, poderia ter lá chegado, à força de não dizer o que devia, mas só o que mais convinha. Ele, inteligente como era, certamente que o sabia, mas faltou-lhe ambição ou, melhor dizendo, sobrou-lhe humildade. O Padre João era excessivamente humilde para comprometer a defesa da verdade com mesquinhas ambições pessoais; era excessivamente humilde para trocar o bom combate da fé pelo seu próprio protagonismo; era excessivamente humilde para antepor a sua glória pessoal ao serviço generoso e desinteressado da Igreja e das almas.

O Padre João Seabra não morreu com a humildade vaidosa dos carreiristas, a que tão amiúde se refere o Papa Francisco. O Padre João serviu a Igreja sem nunca dela se servir, com a vaidade humilde daqueles que apostaram na verdadeira grandeza cristã, que é a santidade. A aparente vaidade de não procurar glórias humanas, para apenas se empenhar em alcançar a bem-aventurança celestial, era, afinal, o modo como o Padre João seguia o exemplo de São Paulo: “aquelas coisas que eu considerara como lucro, considerei-as depois como perdas por amor de Cristo. Sim, na verdade tudo isso tenho por perda, perante o iminente conhecimento de Jesus Cristo, meu Senhor, pelo qual renunciei a todas as coisas e as considero como lixo, para ganhar a Cristo e ser encontrado nele” (Fl 3, 7-9).

Quando o Padre João se despediu da paróquia da Encarnação, já perto do fim, perguntou: “Então o que é que me resta? Resta-me a minha vida dada a Deus. Como no primeiro instante. A minha vida dada a Deus, para que Ele disponha. Para que a utilidade a atribua Ele e não a minha interpretação de mim próprio, nem a ideia que os outros fazem de mim. Mas Ele. Na utilidade da vida que não tem outro propósito senão servi-Lo e oferecer-se por Ele e dar-se por Ele. Como Ele fez por mim”.  A Missa, em que se celebra incruentamente o mistério da paixão e morte de Cristo na Cruz, celebrou-a o Padre João, nos últimos anos da sua vida terrena, cruentamente, no sacrifício da sua própria doação até ao fim.

Esta entrega heróica nasce de uma virtude, que o Padre João viveu sempre, sobretudo na fase terminal da sua vida, e que quase ninguém pratica. Tem um nome, que poucos conhecem: humildade.

Até sempre, Padre João! A Deus!