Rita, 29 anos. Terminou o curso há cinco. Hoje é médica interna. Percorre as urgências do hospital, de sala em sala, de cama em cama. Os doentes gostam dela, apreciam o seu cuidado e a sua dedicação. A maioria nem percebe que é uma médica interna. Para eles, é simplesmente a sua médica.
Trabalha incansavelmente, durante longos turnos, horas sem fim. A cada noite, examina dezenas de doentes num serviço de urgência caótico. Ela, e os como ela. Sem médicos internos, não haveria Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Pois é: por muito que o desconhecimento do que é ser médico possa justificar alguma confusão sobre o papel dos internos, convém que a nossa consciência colectiva perceba pelo menos o seguinte: são sempre médicos! Muitos já com elevado nível de diferenciação. E bem longe de serem os “estagiários bem pagos”, como se escreve em algumas redes sociais.
Os médicos internos representam um terço dos médicos do SNS. E tirando o primeiro ano de formação geral, já se encontram num programa de formação específico, a trabalhar como médicos, com autonomia na maioria das decisões. Fazendo o paralelismo com outras profissões, percebe-se o absurdo de comparar o interno ao estagiário: o interno está há 4 ou 5 anos na empresa, a trabalhar. Gere centenas de processos, e reporta ao seu “chefe”, neste caso, o especialista ou o diretor de serviço. O estagiário não. Até porque no SNS também existem estagiários. São os alunos de medicina do 3º ao 6º ano. Que ficam uns meses no estágio, e depois seguem para o próximo. Como qualquer estagiário. E não como o trabalhador interno.
E por irónico que possa parecer, os que desprezam os “estagiários” no SNS, são provavelmente os mesmos que pagam para ter consultas no sistema privado, com outros “estagiários”. Sim, porque alguns hospitais privados, já têm os seus próprios médicos internos. E ainda bem: precisamos de melhorar a nossa capacidade de formar internos.
Porque o problema, não está nos internos. Nos que trabalham num serviço, e que a cada dia se tornam melhores sob a orientação dos especialistas. Está nos médicos recém-licenciados que não conseguiram ter vaga como internos. Que necessitam de continuar a sua formação, mas que por falta de capacidade formativa (e alerta: não se formam mais internos não por falta de vontade, mas por manifesta falta de recursos humanos; os critérios de idoneidade são públicos e não obedecem a “vontades” ou corporativismos infundados) continuam indiferenciados. Esses sim, por pressão social de não se “desperdiçarem” médicos, são empurrados para o trabalho à “tarefa”, sem supervisão e sem a experiência necessária para cuidar dos seus doentes. Mas a esses, precários e com poucos direitos, ninguém chama estagiário e são convenientemente ignorados. Até porque os internos incomodam mais.
Fazem greves. Querem ter programas formativos de qualidade. Mostram que o “rei vai nú”, quando se recusam a fazer mais de 150 horas extra por ano, e as urgências fecham. E estão cansados.
Vêem os seus antigos colegas de escola, a lutarem por trabalho híbrido. Por semanas com quatro dias de trabalho. E pensam, que “aterraram” no planeta errado. Que no mundo dos internos, nada é assim. Que nos internos, manda quem pode e obedece quem deve. E que é bom que sejam “resilientes”, porque aqui os turnos são de 24 horas. Sem descanso compensatório. Sem proteção legal se algo correr mal (os seguros não cobrem erros feitos em horários ilegalmente prolongados). Com planos de férias sempre por aprovar, e prontos a serem cancelados de véspera se não se “portarem bem”. E ai das internas que pensem em engravidar. Amamentando ou não, os turnos de noite não se fazem sozinhos. E pouco importa o que se deixa em casa.
Já não sou médico interno. E já não faço turnos prolongados. Acordo e deito os meus filhos, como a maioria dos pais. Mas vi muitas Ritas nos meus primeiros anos de internato. E precisam que alguém fale por elas.
Os médicos mais velhos, especialistas. Que normalizaram este ciclo de abuso mas que têm a responsabilidade ética de o travarem. Os políticos, que têm de reconhecer a importância “no terreno” dos médicos internos, incluindo-os formalmente na carreira médica e criando leis que os defendam das situações de abuso. E sobretudo os doentes. Porque, são os doentes os únicos que podem acabar com esta ideia delirante de que o médico interno é “estagiário”. Não é “estagiário”. É um médico. É o meu médico. E é graças a ele que eu tenho o SNS.
Tomás Pessoa e Costa tem 31 anos é Dermatologista no Centro Hospitalar Lisboa Central e professor convidado na Nova Medical School. Antigo atleta de alta competição de judo, em 2018 fundou os projetos de educação médica “perguntas da especialidade” e “dioscope”, que visam democratizar o acesso a informação médica de qualidade. Em 2020, foi distinguido como um dos Jovens Inovadores Europeus do Ano pela WSA. Tem-se destacado no apoio a causas sociais, sendo o responsável em Portugal do Dia Mundial da Dignidade, uma organização internacional que ajuda mais de um milhão de jovens em mais de 80 Países.
O Observador associa-se ao Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.