O processo de descentralização é uma caricatura daquilo em que se transformaram os nossos governantes: negociantes de dinheiro sem olharem para o que serve, se melhora ou não os serviços que o Estado presta. Com o Governo a fazer aquilo que sabe melhor, que é tentar transferir custos para os outros sem financiamento, conseguindo assim fazer os brilharetes de redução do défice público, enquanto tudo à sua volta piora.

Nos recentes debates sobre a descentralização é raro – para não dizer nunca – ouvirmos explicar em que medida esta transferência de competências vai melhorar os serviços que o Estado presta aos cidadãos. Aquilo que pareceu, especialmente após o presidente da Câmara do Porto ter batido com a porta à Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), foi estarmos perante um mecanismo em que a administração central tentava gastar menos, atirando para cima das autarquias responsabilidades sem financiamento.

É aliás lamentável ver como a ANMP se comportou, provando mais uma vez que a fidelidade aos partidos se sobrepõe ao interesse dos munícipes. Ver os autarcas do PS a obedecer aos ditames do Governo na descentralização é mais um exemplo do estado em que está o regime – e de como precisamos alterar estes incentivos perversos. Foi preciso um independente, Rui Moreira, não dependente dos empregos dados pelos partidos, para que a proposta mudasse, embora essas alterações se tenham traduzido basicamente a questões financeiras.

O que está fundamentalmente em causa neste momento são transferências de competências muito limitadas na Educação e na Saúde. Como se pode ler neste artigo do Observador, a recuperação e manutenção das escolas estaria a cargo das autarquias e, pelo que se percebeu, sem garantir os recursos devidos, especialmente para os edifícios em piores condições. Também as refeições escolares entravam nas contas das autarquias, mas, mais uma vez, com o Governo a tentar poupar dinheiro. Tudo isto foi renegociado graças em grande parte a Rui Moreira.

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Na Saúde, pelo que se percebe, os municípios passam a definir os horários de funcionamento dos centros de saúde o que, a ser apenas assim, não é grande herança. Esses horários acabam por ser pré-determinados pelos recursos humanos, designadamente médicos, que são garantidos pela administração central, diga-se, o Governo.

Falta ainda negociar toda a área Social que está previsto que passe para as autarquias em Janeiro de 2023.

A negociação fechou-se, aparentemente, com mais dinheiro e condicionada à apresentação, por parte do Governo, da lista de escolas e centros de saúde, definindo-se as prioridades de intervenção e respetivo financiamento. Já nada nos espanta, mas mesmo assim, é lamentável que a administração central, designadamente os ministérios da Saúde e da Educação não tenham já esse levantamento.

Como se percebe, ninguém se preocupa em responder à pergunta essencial: vão os serviços públicos de educação e saúde melhorar com esta transferência de competências? Ou isto resume-se a delegação de tarefas, uma “tarefização” como diz o presidente da Câmara de Póvoa do Varzim em entrevista ao “Semáforo Político” na Rádio Observador. Ou seja, transferem-se tarefas menores sem se perceber se, com isso se consegue fazer melhor do que se fazia, nem que seja com o mesmo dinheiro.

Face àquilo que tem sido o debate, parece que o principal objectivo do Governo foi poupar dinheiro. Não sendo capaz de fazer uma reforma do Estado em que, com menos, se faça mais, entrega tarefas aos municípios, transferindo para eles menos dinheiro do que aquele que a administração central gasta a fazer a mesma coisa. É uma táctica de reduzir a despesa pública e, se não fosse Rui Moreira, se calhar até funcionava, uma vez que o PSD, enquanto partido, pouco se faz ouvir. Apenas alguns autarcas do PSD e do PCP falaram.

Em certos casos, levando em conta a forma como algumas autarquias gastam dinheiro – ou desperdiçam, melhor dizendo – até se pode admitir que, no seu conjunto, o sector público administrativo podia tornar-se menos gastador e mais eficiente. Mas o problema é que nem todas as autarquias estão na mesma situação, em parte por causa do seu modelo de financiamento. E, convenhamos, esta não é a melhor forma de fazer mais com menos, não é a melhor forma de melhorar os serviços públicos.

Esta descentralização reflecte bem aquilo em que se transformou a governação do país. Parece que ninguém se concentra em melhorar os serviços públicos, antes todos regateiam a manta de dinheiro que parece nunca chegar. Nem mesmo com todo o dinheiro que Bruxelas vai despejando em Portugal.