Todos pudemos ver na televisão — no passado sábado, 6 de Maio — a cerimónia de coroação do Rei Carlos III e da Rainha Camilla. Centenas de milhares de pessoas encheram em Londres as ruas e passeios vizinhos ao percurso real entre Buckingham Palace e Westminster Abbey. Mais de 20 milhões de britânicos – cerca de um terço da população — terão acompanhado as cerimónias pela televisão. Durante o fim de semana, mais de 67 mil festejos populares tiveram lugar por todo o Reino Unido.

O evento mereceu atenção internacional. Curiosamente, entre nós, não mereceu particular atenção aos nossos analistas e comentadores. Esta escassez, digamos assim, é particularmente curiosa, uma vez que Portugal celebra este ano o 650º aniversário da Aliança Luso-Britânica, a mais antiga aliança do mundo, ainda em vigor – que será aliás assinalado pelo Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa e pelo Rei Carlos III numa cerimónia no St. James Palace, em Londres, no próximo dia 15 de Junho.

Como devemos interpretar esta escassez de interesse dos analistas lusitanos pela cerimónia tão marcante entre os nossos aliados britânicos? Uma hipótese plausível é que a cerimónia tenha sido basicamente interpretada como um festejo estritamente monárquico (por isso, alegadamente obsoleto) – o qual, por essa razão, deveria merecer sobretudo a atenção dos monárquicos lusitanos, mas não certamente dos defensores da moderna República democrática de Portugal.

O argumento, aliás sugerido em alguns escassos comentários lusitanos, é plausível e inteiramente compreensível. Mas, receio ter de dizer, é em meu entender crucialmente, ainda que não inteiramente, equivocado.

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Não é inteiramente equivocado porque sem dúvida assistimos a uma cerimónia assumidamente enraizada em tradições ancestrais de celebração da monarquia e do Cristianismo – que alguns, talvez mesmo muitos, poderão hoje considerar obsoletas. Simultaneamente, em meu entender, esse argumento é crucialmente equivocado porque esta ancestral celebração não foi sobretudo sobre o Monarca – mas sobre a mais antiga democracia liberal do planeta, de que o Monarca é garante e servidor.

Por isso mesmo, Carlos III fez questão de declarar no momento da coroação: “I come not to be served but to serve.”

“Venho não para ser servido mas para servir.” Aqui reside o mistério britânico da mais antiga democracia liberal do planeta — que fez todas as revoluções da era moderna (industrial, económica, social, política, cultural), muitas vezes antes das outras nações, sem recorrer à Revolução.

Esta ideia crucial de liberdade como tradição que evolui gradualmente, não como revolução, está inscrita na democracia britânica – que, certamente não por acaso, é a mais antiga do planeta e que, talvez não por acaso, não experimentou revoluções desde a sua mais recente, em 1688. Esta foi, por sinal, uma “revolução relutante” que basicamente visou restaurar “a soberania do Rei no Parlamento” — não simplesmente a soberania do Rei, nem simplesmente a soberania do Parlamento.

Por outras palavras, o principal propósito da chamada “Gloriosa Revolução” de 1688 foi tornar desnecessárias ulteriores revoluções, permitindo a mudança gradual sem revolução. Este propósito foi anunciado, mais uma vez, não como “inovação revolucionária”, mas como restauração do princípio do governo limitado pela lei – que os revolucionários relutantes de 1688 remeteram para a tradição da liberdade da Magna Carta de 1215. Esta liberdade como tradição basicamente consistia num sistema de regras gerais de “gentlemanship”, sob as quais a concorrência e alternância pacíficas entre propostas e partidos rivais poderia e deveria ter lugar.

Este distintivo reformismo da liberdade britânica foi, entre muitos outros, sublinhado por Winston Churchill – o líder da resistência liberal-democrática euro-atlântica contra o nazismo e o comunismo no século XX. Disse Winston Churchill sobre a disposição política de seu pai, Lord Randolph Churchill:

“Ele não via razão para que as velhas glórias da Igreja e do Estado, do Rei e do país, não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou por que razão as massas do povo trabalhador não pudessem tornar-se os maiores defensores dessas antigas instituições através das quais tinham adquirido as suas liberdades e o seu progresso. É esta união do passado e do presente, da tradição e do progresso, esta corrente de ouro, nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a qualidade soberana da vida nacional inglesa.” (Winston S. Churchill, Thoughts and Adventures, London, 1934, p. 52).