O resultado eleitoral é o retrato da herança de Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa. E é também o reflexo de se terem ignorado os problemas que foram sendo expostos pelo Chega, quer pelo PS como pelos outros partidos e também pela comunicação social (da qual não me coloco de fora). Não perceberam que quanto pior tratavam o Chega, mais reforçavam a convicção dessas pessoas de que estavam em conluio na defesa dos seus interesses e não a pensar no país. Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro começaram demasiado tarde a falar para portugueses que foram tratados, através de André Ventura, como mentecaptos, racistas, xenófobos e fascistas.
O resultado até podia ter sido o mesmo, levando em conta quem argumenta que estamos perante uma tendência do mundo ocidental, inaugurada com Donald Trump, e também quem considera que este era um resultado previsível, quando se convoca eleições depois de quase dois anos de um Governo com sucessivas demissões, que culmina com a saída do primeiro-ministro na sequência de mais de 75 mil euros encontrados nas estantes do seu chefe de gabinete. Tudo isto pode ser verdade, mas antes de tudo isso, aquilo que alguns socialistas fizeram, com especial relevo para o ex-presidente da Assembleia da República, foi dar protagonismo ao Chega. De tal maneira que, considerando que alguns deles até são bastante inteligentes, temos todas as razões para admitir que esperavam, com essa táctica, perpetuar o PS no poder e afastar o PSD.
É muito difícil entender em que país vivem alguns dos protagonistas políticos que os impediu de perceber que André Ventura falava, e fala, com o seu registo de apelo às emoções, dos problemas que boa parte da classe média enfrenta. Casas caras e sem condições – basta andar pelo país e ver os registos de humidade dos tijolos -; transportes públicos que não funcionam e que tanto podem existir como não; vizinhos com apoios sociais enquanto conhecem quem precisa e não consegue aceder a eles; comunidades que violam a lei mas que são protegidas; polícias sempre alvos de críticas a trabalharem com esquadras a caírem e automóveis com décadas: imigrantes com culturas que desconhecem a viverem paredes meias com eles e a causar-lhes insegurança – sim pode ser imaginária, mas é o que é -; as escolas onde os filhos andam sem professores e com a indisciplina como regra; um acesso à saúde incerto e uma justiça que não funciona. E, enquanto vivem este quotidiano, vão assistindo ao desmoronar de um Governo, a quem deram maioria absoluta para serem profissionais e governarem, e a um Presidente da República que fala de tudo e de nada e se vê envolvido num caso de favorecimento no acesso à saúde.
A “maioria invisível” de que falou Pedro Nuno Santos é esta, não uma maioria, mas pessoas que estão zangadas com uma governação que acabou por se revelar amadora pela sua leviandade e pelo seu distanciamento em relação às pessoas. O líder do PS e Luís Montenegro mostraram que perceberam o que se estava a passar durante a campanha, quando disseram, de formas diferentes, que sabiam que essas pessoas não eram xenófobas nem racistas. Mas já era tarde e o que prometeram não os convenceu. Neste momento é deles que dependemos para resolver o problema de regime que se coloca ao país, o que não vai ser fácil, especialmente se continuarem a insistir nas receitas do PS de António Costa e do Presidente da República.
Integrar o Chega, como ele é hoje, no Governo não faz sentido. Mas é preciso reconhecer que a dita “cerca sanitária” não funcionou, alimentando apenas a ideia de “estão feitos uns com os outros” do eleitorado zangado e que em parte conduziu a este resultado. Mas entre a participação no Governo e a dita “cerca” há todo um conjunto de possibilidades que até se podem identificar nos programas. Mais importante do que tudo isto é preciso que a classe política saia das suas bolhas e perceba que problemas enfrentam hoje os portugueses e que os tentem resolver com pragmatismo, focados nas soluções e não nas cartilhas ideológicas.
Nós jornalistas também precisamos de nos aproximar mais da realidade. Infelizmente a falta de dinheiro, que dificulta muitíssimo a vida do sector, impede que se façam reportagens com tempo, que retratem o quotidiano. E o jornalismo vai-se ficando pelo relato do que se passa na corte, pelos seus discursos e pelas reacções uns aos outros, em textos de “disse”, “acrescentou” e “reagiu”. Ou em investigações baseadas em papéis. Obviamente que o afastamento da realidade comporta o enorme risco de os jornalistas, mas mais importante a comunidade que servem, serem apanhados completamente de surpresa por movimentos que não anteciparam, como o que nos está a acontecer agora. E é nossa obrigação como jornalistas sair das nossas bolhas, ter distanciamento e conhecer o que se passa à nossa volta para o relatar com “rigor e exactidão”, quer concordemos ou não com o que nos dizem ou está a acontecer.
Os problemas que enfrentamos são complexos e difíceis de resolver, sabemos isso. E o quadro internacional aponta para um futuro ainda mais complicado. Os governos acabam por ter poucas ferramentas para resolver rapidamente alguns dos problemas, por vezes até pela burocracia que eles próprios foram criando. Mas é possível fazer melhor, começando por não insultar quem discorda de nós, por muito que para nós seja óbvio que aquele caminho não conduz a nenhuma solução para os nossos problemas.
As lideranças políticas têm neste momento um enorme desafio, com Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos a terem de ser bastante inteligentes para, sem bloco central, garantirem a governabilidade e recuperarem os eleitores zangados com os políticos, mas sem ostracizar o Chega. A AD vai ter de fazer cedências no seu programa ao PS e até a André Ventura, obviamente naqueles que são valores comuns. Se quiserem de facto resolver o problema que lhe foi deixado por Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa vão ter de cooperar concentrados na resolução dos problemas que estão a levar as pessoas a acreditarem em soluções milagrosas.
Esperemos mesmo, como prometeu Pedro Nuno Santos, que o tacticismo político, que deu no que deu, tenha acabado. Esperemos que finalmente deixe de ser tabu retratar o que algumas pessoas pensam e as dificuldades que enfrentam para que, conhecendo os problemas, se possam encontrar soluções para eles. E esperemos que este resultado eleitoral tenha sido um duche gelado de realidade. Porque afinal os portugueses não estavam narcotizados, não aguentam tudo, como alguns temiam, e deram um murro na mesa.