Mário Centeno entra na Rua do Comércio em Lisboa politicamente mais fragilizado do que o seu antecessor Carlos Costa. Pela primeira vez, desde que é necessário um relatório parlamentar sobre a escolha do Governo, o governador tem votos contra — do BE, PAN, CDS, Iniciativa Liberal e do deputado do PSD Álvaro Almeida –, e passa apenas com os votos favoráveis do PS e graças à abstenção do PCP e do PSD. Mas Centeno parte com o capital político de sair do Governo como o ministro mais popular, batendo também aqui um recorde, ao lado de Sousa Franco, de popularidade de um ministro das Finanças.
Um outro recorde é batido por Centeno, o de entrar na Rua do Comércio, uma instituição com estatuto de independência exigido pelo Sistema Europeu de Bancos Centrais, escassos 35 dias depois de ter saído da Praça do Comércio. Não se viu nisso qualquer problema, incluindo o Presidente da República que usou até exemplos do Estado Novo para argumentar contra os que criticaram essa saída directa do Governo para o banco central. É óbvio que não se pode comparar, nem mesmo com as nomeações anteriores a 1997/98 – quando o Banco de Portugal ganhou o estatuto de independência, condição para Portugal entrar no euro.
Foi também a primeira vez, na vida recente da democracia portuguesa, que um ministro das Finanças governou de costas voltadas para o governador do Banco de Portugal – Mário Centeno não falava com Carlos Costa. Histórias antigas, de um concurso interno no Banco de Portugal, justificam a zanga de Centeno com o governador. De tal maneira que nem o importante cargo institucional que ocupava levou Centeno a colocar os interesses do País acima dos casos desagradáveis que terá vivido no banco central, como economista.
A intervenção institucional que fez no Parlamento permite-nos ter a esperança de que não transportará consigo, como governador, uma atitude de vingança e perseguição a todos quantos considerou terem sido seus inimigos. Os desafios que tem pela frente são infinitamente inferiores aos do seu antecessor e, por isso, tem a oportunidade de brilhar.
O capital político que tem dá-lhe ainda a oportunidade de afirmar de forma mais activa e vocal a independência do banco central. Depois de Carlos Costa ter sido tão condicionado por si e pelo seu governo não se espera que o novo ministro das Finanças João Leão faça o mesmo.
A independência não é proclamada é conquistada, defendeu Mário Centeno na sua audição no Parlamento. Dá assim a entender que Carlos Costa não a conquistou. De facto, face à agressividade a raiar por vezes o insulto que atingiram algumas intervenções contra o Banco de Portugal, Calos Costa teria de estar disposto a abrir uma guerra pública respondendo da mesma moeda, o que pelo que se passou revela que não quis. E podia tê-lo feito já que o cargo de governador é praticamente inamovível.
Centeno terá, contudo, de ter consciência que estará sob um escrutínio maior, terá de facto de conquistar essa independência para cumprir agora o seu mandato que tantas vezes entra em conflito com os objectivos dos governos. Manter a estabilidade financeira, o objectivo geral e amplo do banco central, envolve muitas áreas governativas. E enquanto um Governo actua para ganhar eleições, sendo o curto prazo o seu horizonte, um banco central tem de ter uma perspectiva de longo prazo – é também por esta via que se constroem os pesos e contrapesos que fazem da democracia liberal o modelo que granate maior prosperidade. Mas que, de facto, esses pesos e contrapesos não são em geral do agrado do Governo.
Claro que não estão em causa as qualidades técnicas de Mário Centeno ainda que, como ministro, tenha sobretudo demonstrado qualidades de gestão política da economia – mostrou ser um político com uma agressividade a que não estávamos habituados nos residentes da Rua do Comércio. Mas também não corresponde à realidade quando se diz que não havia mais ninguém. Elisa Ferreira, se não tivesse sido a escolhida de António Costa para comissária europeia, daria uma boa governadora, marcando ainda a história porque seria a primeira mulher a exercer esse cargo.
Mário Centeno mostrou ainda ser um político que não estava disponível para ser questionado pelos jornalistas quando as perguntas escrutinavam as suas afirmações. Esta sua agressividade como político pode ser muito útil para enfrentar governos demasiado focados nos resultados de curto prazo, muitas vezes com políticas que nos ameaçam o futuro – o que se está a passar agora com a pandemia, a falta de dinheiro que existe para actuar sobre a economia, é um exemplo do custo de políticas concentradas nos resultados de curto prazo.
O que está em causa na sua qualidade de governador é a forma como vai gerir a instituição depois do que disse dela e de como a tratou enquanto ministro. E depois de não ter percebido que o Banco de Portugal enfrentou, nos últimos dez anos, os maiores desafios da sua história recente, só comparável com os primeiros anos do pós-25 de Abril. Com Carlos Costa enfrentamos o terceiro resgate e o mais inédito, a queda de bancos.
Com Carlos Costa desfez-se o Grupo Espírito Santo que a acusação agora revelada mostra que tudo o que se sabia era pouco para o que ali se passava. E quem escrutinou o BES e quem teve a coragem de retirar Ricardo Salgado da liderança do banco foi o Banco de Portugal. Sim, é verdade que teve o apoio do governo de Pedro Passos Coelho que se recusou a envolver a CGD num empréstimo a Ricardo Salgado, mas foi a equipa do Banco de Portugal que o fez.
Foi igualmente a equipa do Banco de Portugal sob a liderança de Carlos Costa que fez a resolução do BES, a “mais desastrada” da história nas palavras de Mário Centeno. Como faria Mário Centeno se lá estivesse? Não sabemos.
Mas vamos saber o que fará a partir de agora. Embora os desafios que tem pela frente, espera-se, possam ser menos graves do que aqueles que vivemos entre 2011 e 2015, Mário Centeno vai viver no Banco de Portugal a pior crise da história recente do país e terá ainda de resolver o problema de uma banco, o Montepio que tem a Associação Mutualista, sua accionista, numa situação financeira muito grave.
Mário Centeno governador terá de ser diferente de Mário Centeno ministro. Será que quer? Para o País era bom que quisesse, há cada vez menos contrapesos para o peso pesado em que se transformou a governação. O governador Centeno pode acabar por ser uma agradável surpresa.