A cultura é o campo do conhecimento, do humanismo, da criatividade ou da concórdia, mas não menos da propagação da ignorância, da falsidade, da manipulação ou da violência. A última tendência rivaliza com a primeira no ensino, na literatura, na comunicação social, no cinema, na música, no teatro e afins. Se os seus arautos vivem pela e para a política, é a omnipresença da cultura nas nossas vidas que lhes permite imiscuírem-se por todo o lado difundindo a pandemia que mais corrói os alicerces da liberdade, da justiça, da racionalidade, da prosperidade ou da segurança coletiva.

O resultado é o pensamento sobreviver hoje sequestrado pela tribo guerreira que controla o sentido das palavras-chave, os seus bunkers. O estado de sítio legitima uma declaração de guerra, assim como romper o cerco implica definir alvos precisos. Fica um esboço.

‘Colonialismo’ – palavra tão poderosa quanto equivalente a ‘deslarga’ ou ‘puse-o’ no uso do vocabulário corrente sendo ‘descolonialismo’ o antónimo com patente por registar. Tem como patronos académicos e intelectuais, absurdo redobrado porque ‘colonialismo’não se limita a um mero termo. É sobretudo um conceito que, por essa razão, deve ter validade universal e abstrata. A técnica é simples: à medida que os europeus passam de colonizados a colonizadores e quanto mais nos aproximamos do século XX mais se substitui a carga neutra do conceito de colonização (aplicável, por exemplo, dos gregos, romanos ou árabes nas suas épocas áureas aos europeus até ao século XX) pela carga adjetivada do ‘colonialismo’ que reduz o fenómeno que mais contribuiu para aproximação e progresso dos povos a um crime contra a humanidade. Se conquistadores podem ser muitos, colonizadores limitam-se a ser os que proporcionaram aos outros contributos inovadores que o tempo torna valiosos por serem perduráveis nas identidades dos antigos colonizados.

Criminalidade – palavra blindada para proteger agressores (salvo inimigos seletivos) e escamotear as consequências retardadas no tempo de discursos e práticas que atentam contra a legitimidade da propriedade e contra a formalidade e autonomia da justiça. Corrupção, instabilidade política, violência social ou a consequente miséria bebem da mesma fonte, sendo que os que mais contestam esses fenómenos são os que menos investem na proteção e valorização da propriedade individual, da propriedade privada ou da formalidade e autonomia da justiça e respetivos agentes.

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Estereótipo – conceito sem o qual não compreenderíamos a razão de sermos pessoas que partilham diversas identidades coletivas, atitude apenas possível pelo recurso a referentes como idade, sexo ou cor da pele. Sem estereótipos seria impossível conhecer, isto é, processar informações sobre objetos complexos. Alguém consegue falar de criança, mulher, democracia sem estereotipar? Conforme as conveniências, os engenheiros das palavras truncam o estereótipo pelo apagão apriorístico do fundo de verdade que o sustenta. É o que confunde estereótipo com Diabo e instiga a que se jogue o menino com a água do banho. Resulta depois improvável ter-se em conta que, salvo raríssimas exceções, as respostas das sociedades aos estigmas (a carga negativa dos estereótipos) dependem de esforços de convergência, em partes iguais, tanto dos estigmatizadores quanto dos visados pelo estigma. A ânsia de impor que uns (‘vítimas’ estereotipadas) derrotarem outros (‘carrascos’ que estereotipam) é das ambições mais estapafúrdicas que subjugam as sociedades ocidentais. Daí que estas tenham hoje legitimidade de sobra para se sentirem saturadas de vitimizações de negros, ciganos ou islâmicos, tal como as sociedades do Norte da Europa em relação às do Sul da Europa pelo modo como as últimas insistem em desbaratar recursos financeiros.

Eurocentrismo – que conhecimentos os povos possuem sobre os outros povos, além deles mesmos, que os europeus também não possuam? Não é possível identificar povos mais predispostos do que os europeus desde a Antiguidade Clássica, seguramente desde o século XV, não apenas a conhecer outras terras e povos, mas também a registar e racionalizar esses contactos de acordo com os valores civilizacionais de cada época. Tais evidências têm sido aniquiladas pelo terror linguístico pela supressão da palavra anacronismo. Ainda assim, quem quiser conhecer a universalidade da condição humana atingirá níveis de ignorância superiores se dispensar a milenar tradição intelectual europeia e ocidental. De resto, é risível propalar o ‘eurocentrismo’ sem comparações fiáveis com o ‘américo-centrismo’, ‘afro-centrismo’ ou ‘ásio-centrismo’.

Inclusiva – quanto menos adjetivados, maior o valor analítico dos vocábulos. É a garantia de não se destinarem a lavar cérebros. O presente vê imporem-se expressões como‘sociedade inclusiva’, ‘família inclusiva’, ‘escola inclusiva’, ‘justiça inclusiva’, ‘cidade inclusiva’ e por aí adiante. Os alvos dessa adjetivação são instituições nucleares que gerações e gerações sempre respeitaram preservando as identidades originárias ou herdadas, mas sem nunca se sentirem impedidas de reinventar os seus conteúdos de acordo com cada época. Todavia, a nova paranoia controleira ousa usurpar para monopolizar o que tem sido partilhado por todos, do passado ao presente, sintoma da ânsia totalitária de rutura com o passado. Sociedades que não reagem a quem lhe captura símbolos basilares manifestam sentimentos de inferioridade e prestam-se a ser subjugadas e, quem sabe, escravizadas.

Multiculturalismo – desde que a história se fez história que os primeiros, os maiores e os mais consistentes agentes do que hoje se designa por‘multiculturalismo’ sempre foram os impérios territoriais e suas sequelas. Além de ‘anti-imperialistas’ primários, os agitadores da nova bandeira confundem a mudança do nome da coisa com a criação e valorização da essência da coisa. Procedem como ladrões de automóveis que lhes mudam a cor e falsificam as matrículas. Ufanos, os novos ‘multiculturalistas’ são tanto mais acirrados quanto menos vivem fora do seu continente de origem e quanto menos partilham laços familiares fora da etnia dos seus antepassados ou muito próximas.

Neo + ismo – prefixo e sufixo são instrumentos fundamentais da fraude linguística. Os produtos de excelência são a transformação do ‘colonial’ em ‘colonialismo’ acrescido da dupla falsificação do ‘neocolonialismo’; ou a multiplicação do ‘liberal’ em ‘liberalismo’ e, pior, em ‘neoliberalismo’. Tamanha ‘ciência’ faz disparar os alertas vermelhos das ameaças à humanidade vindos do ‘neocolonialismo’ (a China não conta…) e do ‘neoliberalismo’. O problema dessa ‘ciência’é que os rebeldes visados teimam em nunca se auto identificarem como ‘neocolonialistas’ (como os ‘velhos’colonos) ou ‘neoliberalistas’ (como os ‘velhos’ liberais). A título ilustrativo, verifique-se o que se ensina nos manuais escolares sobre os governos de Margaret Thatcher (1979-1993) ou Ronald Reagan (1980-1988), estigmatizados expoentes do ‘neoliberalismo’ e, mesmo que o discurso dos próprios se limite a reivindicar a ‘liberalização’ da economia e dos mercados tal palavra é descodificada, para os estudantes, como propósito manifesto de ‘desregulação’dos ditos em nome do rigor das aprendizagens.

Racismo – vocábulo indispensável aos que se saciam de cadáveres. A atitude sanitária das sociedades é sempre a de sepultarem restos mortais em putrefação. Porém, devem proceder ao elogio fúnebre até porque a epidemia assumiu proporções bíblicas e fúrias linchadoras andam à solta. O fenómeno apenas sobrevive em contextos nos quais a identidade coletiva branca é carrasca da negra. Sem equívocos, sem variantes, sem adjetivações (como ‘color-blind racism’, ‘racismo individual’, ‘racismo institucional’, ‘racismo cultural’e outras manipulações). Contra isso, o correr do tempo impôs identidades que evidenciam atitudes e comportamentos cada vez mais heterogéneos nas relações entre si mesmas e com as outras, bem como todos passaram a ter legítimas razões de queixa uns dos outros: negros, brancos, mestiços, mulatos, indianos, chineses, asiáticos, índios e os demais. Se todos se queixam de todos e dos próprios é a prova mais segura da implosão do racismo historicamente instituído. Este fazia parte de um contexto de relações de poder no interior das sociedades enquadradas pela colonização europeia, pela discriminação racial legalmente instituída, pelo apartheid ou pela guerra fria. Se essas peças-chave não sobreviveram ao século XX, o ‘racismo’ está a ser arrastado borda fora do seu tempo histórico. A haver resquícios limitam-se a questões de cortesia no trato, de civilidade, em sociedades cuja obrigação maior é a de preservarem a liberdade individual. Razões de sobra para os estudos sobre o ‘racismo’ terem deixado de ser credíveis. Nos seus critérios, sociedades diferentes não são comparadas no modo como integram minorias (por exemplo europeias ‘versus’ africanas ou árabes); ajustam-se pressupostos consoante as cores de pele para perpetuar resultados do século passado; não se clarifica se a saliência do ‘racismo’ é aferida pelo que as pessoas dizem ou se pelo que as pessoas fazem, sendo plausível intuir que os que mais deixam escapar incómodos raciais podem ser os mais próximos no quotidiano dos outros diferentes com quem acabam por conviver sem roturas, enquanto os que mais vocalizam indignações antirracistas podem ser parasitas identitários, isto é, os que menos convivem no quotidiano habitual – residencial, profissional, familiar – com a diferença; etc.; etc.. Em suma, o ‘racismo’ tornou-se num número do circo político-mediático e fonte de subsídios de ‘ativistas’ e universitários.

A lista poderia estender-se, entre inúmeras possibilidades, a ‘alegado’, ‘ambiente’, ‘ativista’, ‘austeridade’, ‘escravatura’, ‘fássismo’, ‘feminismo’, ‘indignado’, ‘islamofobia’, ‘populismo’, ‘rapper’, ‘sensibilidade’ [social], ‘sindicalista’, ‘subsídio’, ‘urgente’. A dimensão da ameaça justifica a existência de dicionários do terror e da fraude linguísticos para melhor libertar as gerações vindouras de desgraças. Seria um avanço civilizacional em homenagem a George Orwell.