O Quadro Plurianual das Despesas Públicas nunca mereceu atenção mediática, apesar de todos os anos ser publicado. Este ano foi o centro das atenções, por várias razões. E como o Governo o enviou para o Parlamento atrasado e isolado e, dessa forma, para o espaço público, sem qualquer explicação ou contexto, de repente fomos confrontados com uma receita de impostos que atingia praticamente o valor do PIB que se pode prever para 2025. Era óbvio que isso não podia ser, o que não impediu que acabasse por ser essa a mensagem, com alguns títulos a apontar para um crescimento da receita de impostos da ordem dos 20% e até com a oposição a usar meias verdades para utilizar esse número.
Se olharmos para o quadro, o que se escreveu descreve o que lá está – a linha onde estão os 293 mil milhões de euros em 2025 chama-se “receita de impostos”. Pequeno grande detalhe: se fossem mesmo e apenas impostos cobrados no ano de 25 estaríamos a falar de uma carga fiscal da ordem dos 100% (levando em conta a última projeção do INE para o PIB de 24 e um crescimento nominal de 5% em 25 até ultrapassa ligeiramente o valor dos bens e serviços que se prevê para o próximo ano).
É difícil perceber a razão pela qual se chama “receita de impostos” quando se devia designar apenas receita ou mais rigorosamente fontes de financiamento. Mas é assim que está no documento do Governo assim como em todos os anteriores, integrado nas Grandes Opções do Plano. Uma possível explicação tem de ir beber à teoria económica, que trata a dívida como impostos futuros, mas admitamos que é demasiado sofisticado e um risco quando é preciso comunicar de forma simples.
Claro que nem todos os jornalistas cometeram o erro de transformar aquele valor em impostos, nomeadamente entre os jornais especializados como o Negócios e, nos generalistas, como no Observador, que contou com o olhar da editora de Economia Alexandra Machado. O alerta que isto nos deixa, a nós jornalistas, é para a importância da especialização no jornalismo. Mas também nos mostra que falhou a análise critica da informação – bastava pensar no valor do PIB – , antes de a transmitimos ao público em geral. No vício dos diretos, que contaminou também os jornais através dos sites, corremos o risco de nós, jornalistas, nos transformarmos em papagaios, em pés de microfone, perdendo-se o papel de intermediação fundamental para o escrutínio, a confirmação e a análise critica da informação.
A falta de recursos num mundo comunicacional muito acelerado explica em parte alguns destes problemas, em que as notícias são dadas sem contexto e sem análise critica, que depois leve a procurar esclarecimentos adicionais, a escrutinar, antes de entregarmos a informação ao público. O regulador também em vez de ajudar parece concordar com esta tendência. A decisão da ERC sobre a entrevista de José Rodrigues dos Santos a Marta Temido – por muito que possamos considerar que, como disse Judite França, não correu bem aos dois – revela a valorização de um jornalismo acrítico e que não escrutina.
Claro que os protagonistas políticos poderiam contribuir para reajustar a informação do Quadro sobre a Despesa Pública, mas a oposição está pouco interessada nisso. Neste caso concreto, o deputado socialista António Mendonça Mendes, que foi secretário de Estado dos Assuntos Fiscais e por isso tem, em princípio, conhecimento do que significa aquele quadro orçamental, optou por dramatizar em vez de esclarecer. Referindo-se ao aumento de 20% na rubrica dos impostos, embora tenha dito que inclui “a receita fiscal dos impostos propriamente dita” e a dívida, acrescentou: “Das duas uma, ou o Governo está a contar com um aumento estratosférico da receita fiscal e tem de explicar os pressupostos que o leva a ter uma visão tão optimista” ou “está a contar com um aumento muito substancial da dívida e está a contar com o desequilíbrio orçamental no próximo ano”. Basta olha para as Grandes Opções do Plano do ano passado para vermos que a dimensão dos valores não é muito diferente – sempre próximo do PIB – , podendo ser maior em 25 por causa de um calendário de amortização de dívida excepcionalmente elevado. E isso poderia ter sido explicado.
Mas também o Governo e especialmente o Ministério das Finanças não fica aqui isento de responsabilidades no caos informativo que se gerou sobre a evolução da receita em 2025. As Grandes Opções do Plano de 2025 foram entregues com atraso e sem este quadro que o PS estava a pedir e a considerar fundamental para as negociações. Sabendo isso, quando entregou o quadro ao Parlamento, o Ministério das Finanças sabia que ia receber atenção mediática e, por isso, deveria tê-lo enquadrado. Mas além de não o fazer, o que apresenta é incompleto. Falta não apenas o saldo estrutural – que permite aferir a orientação expansionista ou contraccionista da política orçamental – como não fez, como acontecia com o Governo PS, a sub-divisão da despesa entre esforço nacional e dos fundos europeus.
Como consequência dessa falta de cuidado na divulgação de informação tão técnica – os valores não são consolidados e a receita é contabilizada na óptica das fontes de financiamento – o Ministério das Finanças passou o tempo subsequente a fazer esclarecimentos, até por causa do que tinha dito António Mendonça Mendes. Primeiro para dizer que continuava a prever um excedente orçamental em 2025 entre 0,2% e 0,3% do PIB, depois para dizer que a despesa e a receita fiscal devem crescer em torno dos 4% em 2025.
Governo e partidos da oposição deveriam saber que o caos informativo não beneficia ninguém e não deviam contribuir para notícias que, não sendo factualmente falsas, induzem as pessoas e alguns jornalistas em erro. A paixão pela política enquanto jogo, em que os protagonistas se divertem a colocar o adversário em dificuldades, pode ser um desafio intelectual de enorme gozo. Mas é assim que se vão alienando os eleitores em particular, e os cidadãos em geral, que já nem parecem ouvir. Porque se tivessem ouvido estariam em pânico com receitas de impostos iguais ao valor do PIB.