A elaboração do orçamento baseia-se em duas presunções. O governo pressupõe uma determinada receita e uma determinada despesa. Se a despesa assumida como real for maior do que a receita assumida como provável, há défice. Com défice a dívida aumenta porque poderá haver necessidade de pedir emprestado para pagar contas, incluindo os juros sobre dívidas anteriormente contraídas. Se o governo estimar uma receita maior do que aquilo que se dispõe a gastar, há superávite. Logo, não entendo as loas dedicadas ao ministro das Finanças que não tem feito outra coisa que não seja ir cobrando tudo o que pode e como pode, para gastar o mínimo que lhe apetece. Apetece-lhe orçamentar pouco, gera superávite. Até pode orçamentar muitos gastos que também não faz mal, já que o decreto-lei de execução orçamental pode logo determinar que afinal não se gasta tanto quanto o orçamento previa, como pode não libertar as verbas e ir arrecadando umas massas. É isso que tem acontecido com os serviços públicos, com a saúde em particular. O orçamentado já tem sido pouco para cobrir as necessidades futuras e as dívidas passadas e, como se isso não fosse já suficiente, a ânsia de ficar bem na fotografia tem levado o nosso ministro das finanças a nem gastar o que tinha autorização para despender. Investimento, não tem havido que chegue, nem sequer para manutenção. Dívidas, são a regra na saúde que vive de não pagar ou pagar tarde aos fornecedores de bens e serviços. Quando a dívida é um pouco escandalosa, na perspetiva do Terreiro do Paço, injetam-se uns milhões do que tinha sido poupado e disfarça-se a coisa até ao ano seguinte. Sendo assim, porque o orçamento do estado é um exercício de presunção que se apresenta ao Parlamento para que este aprove um teto de despesa, não percebo a excitação com a discussão do documento.

No caso da saúde tudo começou com a Resolução do Conselho de Ministros (RCM) n.º 198/2019 que é um exercício de intenções – todas as RCM não são mais do que isso -, para tentar colmatar a ira pública por causa do descalabro em curso no SNS. Em boa verdade, para lá dos valores que declara querer inscrever no orçamento para 2020 (800 milhões de Euros) e a disposição de injetar, como é habitual, uma verba “extra” (550 milhões de Euros) para ajudar a pagar as dívidas mais chocantes, a novidade que interessa na RCM está em dois pontos. 1) “Determinar que a aplicação da lei dos compromissos e pagamentos em atraso, aprovada pela Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro, na sua redação atual, é adequada à especificidade do setor e à nova realidade de baixo endividamento que resulta do esforço acima descrito”, o que já se traduziu na proposta de orçamento pelo alargamento de 3 para 4 meses de garantia para provisão destinada ao pagamento, e 2) a aprovação “do quadro de Programação Plurianual de Investimentos, associado ao PMR -SNS, no montante total de € 190 000 000,00”. Fica por saber em que consiste o Plano de Melhoria da Resposta do Serviço Nacional de Saúde (PMR -SNS) que esta resolução aprovou e não detalha, bem como os pormenores concretos da Programação Plurianual de Investimentos. Igualmente, fica por saber se os 190 milhões de Euros são para o programa todo ou para cada ano do programa. O governo vendeu a ideia de que seriam 190 milhões para cada ano, mas o que está em diário da república são 190 milhões para toda a Programação, seja lá o que ela for. Fica também por saber se esses 190 milhões de Euros não incluem já o “Programa de Investimentos na Área da Saúde, doravante PIAS, no montante total de € 90 637 254,14” aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 77/2019. Se assim for, dos 190 milhões, uma parte já estava prevista e só 100 milhões é que são novidade. Autorizações para contratar os funcionários necessários (estimados em aproximadamente 8500 funcionários) e os 4 milhões para pagar centros de responsabilidade integrada (CRI), são intenções que ninguém sabe se poderão ser concretizadas. Note-se que aos novos funcionários, se existirem pessoas qualificadas suficientes e com vontade de ingressar no funcionalismo público, há que subtrair o contínuo fluxo de aposentações, ainda tendencialmente crescente no caso dos médicos. Devo acrescentar que a nova fé nos CRI não vai trazer nada de substancialmente bom para o SNS. Por enquanto, os CRI são um subterfúgio legal para distribuir uns trocos a mais aos trabalhadores e uma esquiva a fazer o necessário que é rever as carreias e aumentar salários, independentemente de poder haver incentivos pela produção.

Dito isto há que reconhecer que a disposição de gastar mais, em 2020, com o programa de saúde é positivo. É certo que o reforço orçamental de 800 milhões de Euros é apenas a constatação de que havia suborçamentação e que este valor apenas cobrirá as despesas correntes que aconteceram em 2019. Não chegará para cobrir a inflação, pagar a inovação terapêutica, assegurar a limpeza do passivo, suportar as contratações necessárias ou permitir qualquer tipo de atualização salarial. Acima de tudo, não se sabendo qual a planificação de investimentos, é desde já evidente que as verbas que o governo pretende gastar na modernização do SNS são insuficientes para garantir a melhoria de eficiência indispensável à sua sustentabilidade.

Também é politicamente relevante que os governos das esquerdas mantenham o essencial da lei dos compromissos, uma lei dos tempos da Troika e símbolo claro do que é a austeridade e necessidade de controlo central sobre a despesa, quando na altura em que foi preciso desenhá-la e aprová-la tanto a criticaram. Incoerências da política, as mesmas que levam o nosso atual primeiro-ministro a defender o fim do défice público, com políticas que agora são de esquerda e antes eram “fascistas”.

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Em termos de saúde pública é de louvar a preocupação em alargar o plano nacional de vacinações, de acordo com as recomendações dos peritos e não pela mera vontade dos deputados da AR. Também é de apoiar que o tabaco seja mais taxado, embora abaixo do desejável, mas sublinhe-se o aumento do imposto específico e não do ad valorem. O englobamento de todo o tipo de produtos com tabaco, incluindo os denominados “cigarros eletrónicos” nas versões de vaporização (vaping) e aquecido era indispensável. Ficou por rever o imposto sobre bebidas com açúcar, já que o ajustamento pela inflação não traz a desejável mudança do imposto e, acima de tudo, não cria uma legislação sobre limites máximos de açúcar adicionável. Julgo que ainda não foi desta que aumentaram o IVA da manteiga e de outras gorduras animais que deveria ser máximo, com as margarinas na taxa mínima. Como sempre, fica a faltar a aplicação da taxa máxima de IVA ao vinho e um reforço significativo das taxas sobre bebidas com álcool. Em termos de impostos sobre álcool e tabaco, há que reconhecer, o Estado sempre foi mais modesto do que sobre o IRS. Temos tabaco barato e álcool perigosamente baratíssimo.

O OE será aprovado. A esquerda do PS abster-se-á convenientemente, para poupar aos outros esse incómodo, já que todos querem que Costa governe e ninguém quer que as eleições se repitam agora, à exceção do Chega que espreita o ainda improvável crescimento da sua representação parlamentar. Não haja enganos. Costa, por mais que nos queira convencer do contrário, vai reeditar uma versão soft da geringonça a la carte. Se o PSD for inteligente encostará o PS de hoje ao lugar que António Costa escolheu, bem juntinho ao Bloco de Esquerda.

Politiquices à parte, a mensagem de Natal do primeiro-ministro, só sobre saúde, merece ser apreciada. Choveram críticas e recriminações. Não tiveram razão de ser. Prefiro aplaudir o reconhecimento de que a saúde dos portugueses é um assunto de Estado e que o primeiro-ministro de Portugal o reconheceu. Tarde, sem dúvida, mas chegou lá. Criou um precedente político que é importante. O tema da saúde não sairá mais da agenda política deste governo, mesmo que dele queiram fugir. Costa gerou expetativas a que terá de responder. Comprometeu-se, pessoalmente, com a melhoria da saúde e do SNS. É certo que nem todos do PS e da sua esquerda já perceberam que não vale a pena continuar a culpar o governo que nos tirou do programa de ajustamento a que o PS nos tinha votado. De agora em diante, mais do que nunca, é ao PS e ao Dr. António Costa que as reclamações deverão ser endereçadas. Já era assim, mas agora não podem restar dúvidas. A mensagem do primeiro-ministro não destrunfou a oposição que só se andar a dormir é que deixará passar as promessas que foram feitas e que terão de exigir que sejam cumpridas. A reclamação por mais e melhor saúde foi legitimada pelo nosso primeiro-ministro e só isso será sempre motivo de regozijo para quem com a saúde dos portugueses se preocupa.