Foi recentemente decidido pelo governo, em articulação com o principal partido da oposição, o que fazer em relação à definição da localização dum novo aeroporto na zona de Lisboa.
A leitura de artigos anteriores que tenho publicado, e outros, é mais que suficiente para se perceber a historiografia que levou à presente situação e que se carateriza por: i) estarem verificadas as condições que justificam a necessidade de se construir um novo aeroporto na zona de Lisboa, por saturação da Portela; ii) existir um operador aeroportuário, a ANA/Vinci, que tem a responsabilidade de o fazer, sem custos para o contribuinte e em condições que vierem a ser negociadas; iii) existir uma Resolução do Conselho de Ministros, aparentemente não revogada, que indica que a localização do Aeroporto deveria ser no Campo de Tiro de Alcochete, para onde já foi efetuada, pelo LNEC, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, uma avaliação ambiental estratégica preliminar e existe uma DIA (Declaração de Impacte Ambiental) que se deixou caducar.
Com este enquadramento julgo que o mais difícil era arranjar justificações para não se começar a construir, o mais rapidamente possível, a 1ª fase do aeroporto no Campo de Tiro de Alcochete. Era difícil mas o governo conseguiu. Deu cobertura ao aparecimento de uma solução no Montijo, supostamente proposta pela ANA/Vinci, que não faz qualquer sentido. Deixou cair na rua a discussão sobre a localização do aeroporto de onde resulta, como seria expectável, que toda a gente se sinta na obrigação de opinar sobre onde o aeroporto deveria ser construído, mesmo sem fazer ideia da complexidade inerente a um planeamento aeroportuário sério. Permitiu o aparecimento de inúmeras soluções alternativas, muitas delas baseadas na assunção de que se houver uma pista então pode-se lá construir um aeroporto internacional, e outras que justificam a sua existência, quer por interesses autárquicos, quer por interesses de investidores, sem se saber bem quem são ou que motivações têm.
Entrando neste pântano de, onde é quase impossível sair, o governo fez uma manobra interessante que foi encorajar o maior partido da oposição a juntar-se a ele no pântano que referi. E, apesar de recalcitrante de início, este partido não resistiu e juntou-se alegremente, talvez achando que poderia ter alguma vantagem no desenvolvimento aeroportuário do aeródromo de Tires. Julgo que está com azar pois Tires precisa de uma pista maior para que possa receber todos os jatos privados, principalmente os de longo curso que têm que descolar com combustível suficiente para chegar ao destino pretendido. E, sem destruir o morro a norte da pista, tal deverá ser difícil. Julgo que teria sido mais prudente ter tido uma posição de distanciamento, sugerindo apenas que o governo fizesse o que tinha obrigação de fazer seguindo os três pontos que mencionei antes.
De mãos dadas, os dois maiores partidos nacionais decidiram então definir uma metodologia para sair do pântano que eles próprios criaram. Fazer de novo uma avaliação ambiental estratégica, como se não fosse possível recuperar a avaliação preliminar que o LNEC tinha feito, e criar mais um grupo de trabalho, designado por Comissão Técnica Independente, com várias áreas de atividade específica. Não está em causa a eventual valia das pessoas que forem escolhidas para integrar a comissão, até porque, como tenho referido, Portugal tem excelentes técnicos nos mais variados domínios. Está em causa o modus operandi. Estas pessoas vão ter equipas técnicas de apoio? Públicas ou privadas? Personalidades independentes umas das outras, tal como o nome da comissão diz, ou a independência refere-se à relação entre os sectores a serem estudados? Vão realizar trabalho de campo que justifique um ano e meio de duração do estudo? Vão estar todos dedicadas a tempo inteiro ao processo durante pelo menos ano e meio? Houve alguma estimativa de custos deste processo?
Não é preciso perguntar quem vai pagar, porque são sempre os mesmos que o fazem, nós todos. Tal como não é preciso ter um oráculo de último modelo para perceber que este potencialmente conflituoso processo decisório muito dificilmente vai conseguir obter bons resultados. Basta alguma vez ter concebido, gerido ou coordenado um projeto de grande dimensão para saber que não é bem assim que as coisas funcionam. Daí as minhas dúvidas. Infelizmente, parece que nem o governo nem os dirigentes do maior partido da oposição têm ideia daquilo de que estou a falar. Ou, pior, do que eles estão a querer dizer.
O que acabei de escrever é triste porque diz muito de quem nos governa e de quem se quer perfilar para nos querer governar no futuro. Não contentes com isto, ainda foram sugerir uma panóplia de locais ou situações a estudar.
Umas das concepções a avaliar pela comissão são as soluções do tipo Portela+1, que já tentei demonstrar antes que não funcionam. E que a Ordem dos Engenheiros e a Ordem dos Economistas, em documento que ambos assinaram, consideram ser desajustada. Por isso, foi um desapontamento ouvir num comentário na TVI, no noticiário da noite de domingo, a defesa do aeroporto complementar do Montijo com razões mais que esgotadas e com informações incorretas sobre o custo da solução Alcochete. E tive pena que a jornalista daquela estação, como sempre acontece também com os outros colegas jornalistas noutras ocasiões e a outras pessoas, não tenha solicitado ao comentador, que avançou com aquela ordem de grandeza de custos, para divulgar onde tinha ido obter a informação que tão convicta e sorridentemente partilhava em horário nobre e que foi repercutida em diversos canais de informação.
Não posso deixar de achar curioso, também, que na lista de soluções tipo Portela+1 a estudar, não tenha sido incluída a solução Portela+1ª fase de Alcochete. Talvez esquecimento, no meio de tanta azáfama em encontrar soluções novas.
As soluções consideradas como possíveis substitutas da Portela cujo estudo foi proposto são o Montijo (com a Portela como complementar) e a solução na zona de Santarém, para além do aeroporto no Campo de Tiro de Alcochete.
A possibilidade de que um eventual aeroporto que se venha a construir no local da Base Aérea do Montijo possa vir a substituir, total ou parcialmente, a Portela, face a tudo o que já foi dito por tanta gente, é tão fora de vulgar que não me merece mais comentários e nem sequer a vou adjectivar.
A solução designada por Santarém, a solução mistério, foi, aparentemente, incluída porque o ministro das Infraestruturas se referiu a ela como tendo dado provas de merecer ser estudada. Pelos vistos só os promotores da solução, os autarcas da zona e o ministro sabem o que é e onde fica. A SIC, apesar de lhe ter sido vedado o local onde deve ter havido a apresentação às autarquias (não se sabe onde, nem quando, esta solução foi apresentada ao ministro), fez uma excelente reportagem, identificou os investidores como o Grupo Barraqueiro (a quem a TAP foi sonegada quando o governo decidiu reverter a privatização daquela empresa e que foi uma das primeiras medidas do governo da geringonça) e uma empresa portuguesa de nome estrangeirado com capital social de €5.000. E quando se pensava que a localização na zona de Santarém poderia ter sido escolhida por estar fora da área de influência contratual da ANA/Vinci, ouve-se dizer, na comunicação social, que os promotores desta localização mistério estão disponíveis para a discutir este assunto com a ANA/Vinci.
Por fim, a muito estudada solução no Campo de Tiro de Alcochete, que tenho defendido, e que já devia estar em construção há muito tempo. É a única solução que permite a substituição total da Portela, num futuro mais ou menos próximo (mas tão próximo quanto possível), começando-se pela construção de uma 1ª fase cuja evolução pode ser adaptada à variação da procura aeroportuária.
Mas, para garantir que nada fica de fora, a tal comissão independente ainda pode escolher outras localizações para estudar. Se calhar, em Leiria onde irá passar uma eventual futura e tantas vezes prometida rede ferroviária de alta velocidade, que o ministro tornou a anunciar com pompa e circunstância como se fosse uma novidade, ou onde existirem grupos de investidores interessados, de preferência com empresas de capital não inferior a €5.000.
A cereja no topo do bolo é que tudo foi adiado, para já, para o final de 2023. É assim que se tratam soluções que requerem uma decisão urgente, o que abona pouco a favor de quem patrocina estas situações. E o governo acabou por marcar pontos porque conseguiu um importante apoio político, que até esta altura não tinha conseguido, para continuar a justificar não decidir sem ser criticado por isso.
Muitas vezes ouve-se dizer nos media, por muitos dos designados comentadores políticos e sociais e supostos fazedores de opinião, que há algumas pessoas que gravitam na política nacional que são muito inteligentes, dos mais inteligentes que há, com grande intuição política, dos mais politicamente intuitivos que há, brilhantes nas mais diversas áreas, dos mais brilhantes que há, e com grande argúcia política, dos mais argutos que há. Cada um poderá imaginar os que para si cabem nestas caixinhas. Se, de facto, são isto tudo, e quem sou eu para disputar esses nobres atributos teóricos, lamento que não consigam consubstanciar na prática o resultado de tanta capacidade intrínseca. A única coisa que se percebe é falta de competência e falta de responsabilidade.
Não vou insinuar que o governo nos distrai sistematicamente com situações e decisões desenquadradas da realidade e algumas inusitadas, que mantêm os media ocupados a discuti-las, para nos fazer esquecer o avolumar dos nossos problemas do dia-a-dia, muitos deles criados pelas más opções políticas e ideológicas de quem nos governa. Mas, já não digo nada. Sei, contudo, que somos todos nós, portugueses e contribuintes que, mais cedo ou mais tarde, as vamos ter que pagar.