Tinta de um grupo irrelevante de activistas climáticos. Um primeiro-ministro cujo mandato terminou há 8 anos. Conversa sobre um referendo cujo resultado é incontestado politicamente há 17 anos. O décimo primeiro assunto mais importante para os portugueses. Estes foram os temas que ocuparam a primeira semana da campanha eleitoral. Naturalmente, não estou particularmente satisfeita e creio que a maioria dos leitores também não. Foi neste contexto que, ao longo desta semana, pensei várias vezes naquilo a que chamo o paradoxo da campanha eleitoral: a campanha é pouco esclarecedora, supérflua, teatral, quase inútil, mas a sua realização é inevitável.
Porque é que uma campanha tem tendência para ser pouco esclarecedora, supérflua e teatral? Porque a política tem uma série de características que a tornam particularmente propensa à utilização de linguagem má. Linguagem má é uma tradução minha e assumidamente medíocre ao termo “bad language” que alguns filósofos analíticos têm vindo a analisar. O que é linguagem má? É a utilização de um discurso que satisfaça pelo menos uma destas três características: é pouco sincero, erróneo, ou pouco claro. Quando um político em campanha mente sobre as suas verdadeiras intenções ou, em casos mais cinzentos e mais frequentes, dá a entender de forma oblíqua que dá mais importância a um determinado assunto do que realmente dá, está a ser pouco sincero. Os conceitos de virtue signaling e grandstanding, recentemente em voga, também são linguagem pouco sincera, uma vez que pretendem apenas mostrar que somos moralmente impecáveis e defendemos certas posições, mesmo quando sabemos que a realidade é mais complexa e que, caso estivéssemos num contexto doméstico menos performativo, não faríamos aquelas afirmações.
Quando um político em campanha faz afirmações factualmente erradas ou, em casos mais cinzentos mas também mais frequentes, utiliza factos de forma selectiva ou diz “meias-verdades” para levar o público a tirar conclusões que não correspondem à realidade total, está a utilizar discurso erróneo. Da mesma forma, quando um político em campanha utiliza eufemismos, linguagem burocrática confusa, slogans vagos, ou mesmo os chamados dog whistles e code words, que pretendem referir-se a determinado assunto politicamente controverso sem ter de o dizer explicitamente, está a ser pouco claro.
O problema fundamental é que a linguagem má é boa política, na observação pertinente de Adam F. Gibbons, num ensaio recente. Se analisarmos cada um dos vícios que apontei nos parágrafos anteriores, percebemos que os políticos têm incentivos e são beneficiados do ponto de vista eleitoral se os cometerem. Em abstrato, nenhum cidadão admite gostar que os políticos sejam mentirosos, insinceros, vagos ou digam coisas falsas. No entanto, um político que esconda as suas verdadeiras intenções de não resolver um problema premente ou de executar uma política pouco popular terá um resultado eleitoral melhor do que aquele que honestamente declare que não quer saber, que não sabe o suficiente ou que quer implementar políticas que a maioria da população desgoste. Um político que recorra a declarações simbólicas de virtue signaling ou a slogans arrisca menos do que aquele que queira ser claro, contundente e sofisticado sobre as suas propostas e opiniões.
Avanço agora para a segunda componente do paradoxo das campanhas eleitorais: não só estas estão repletas de discursos e acções de bad language, como são também quase inúteis no seu objectivo declarado. A maioria dos estudos respeitáveis mais recentes admite que as campanhas políticas gerais e mais salientes, como as eleições legislativas no nosso país ou presidenciais em regimes presidencialistas, têm uma capacidade muito reduzida para alterar as opiniões políticas dos eleitores. A persuasão é algo extremamente difícil. E, se alterar atitudes (opiniões) já é difícil, alterar comportamentos, como o acto de votar, é ainda mais complicado. Acresce que, no mundo real, os contextos políticos são contextos competitivos: não estamos apenas sujeitos a observar anúncios e acções de campanha de um único partido de forma repetida. Pelo contrário, os vários partidos e facções políticas apresentam, em simultâneo, as suas tentativas de persuasão, mas estas podem ser facilmente contrapostas logo de seguida por outros partidos que com eles competem. Persuadir alguém neste contexto é ainda mais difícil.
A maioria de nós terá opiniões políticas no próximo dia 10 de Março que são em tudo semelhantes às opiniões que tínhamos no passado domingo. Está em voga dizer, especialmente entre comentadores e analistas políticas que leram superficialmente artigos sobre política norte-americana, que o que interessa não é convencer e persuadir os eleitores, mas sim mobilizá-los. Ora, a investigação recente mais rigorosa indica que, fora dos Estados Unidos, essa visão das coisas não é correcta. Fora dos EUA, especialmente em contextos multipartidários, onde há muitos eleitores sem filiação partidária definida, ou onde há muitos eleitores centristas e flutuantes, a dimensão relativa do efeito de mobilização não é necessariamente superior, e na maioria dos casos é inferior, ao efeito demográfico e ao efeito de persuasão e alteração da direcção do voto. As dimensões relativas destes três efeitos são muito variáveis e, em Portugal, não há qualquer estudo de painel que nos permita saber a dimensão real de cada efeito.
Então, qual é a utilidade de uma campanha eleitoral? Eu diria que as campanhas só não completamente inúteis porque elas fornecem, ainda que em quantidades reduzidas, informação nova a muitos eleitores. Note-se que esta informação não é necessariamente informação detalhada, complexa e relevante sobre a realidade do país ou os parâmetros a ter em conta na execução de políticas públicas. Como temos visto, a execução de políticas públicas não é propriamente prioridade dos políticos em campanha eleitoral. Simplesmente refiro-me a informação sobre a saliência relativa dos vários assuntos e a importância que cada partido lhes dá. As campanhas também nos dão informação sobre a “competência” ou o carácter dos candidatos, em pequenas coisas como as suas reacções e comportamentos, ou mesmo informação anteriormente desconhecida sobre as suas acções e o seu passado. Finalmente, as campanhas também podem ser momentos de informação sobre temas sobre os quais ainda não temos opiniões bem definidas. Claro que, num contexto de má linguagem, de insinceridade, falta de clareza ou mesmo erro, esta informação está longe de ser perfeita e pode até ser enganadora. Mas saber quando devemos ignorar uma informação antes de sabermos se ela é enganadora é tarefa quase impossível. Esta é a tragédia. Como tal, se queremos votar de forma minimamente informada, não temos outro remédio se não devotar alguma atenção, ainda que mínima, ao que se passa em campanha eleitoral. Mesmo quando a campanha está cheia de linguagem má e acontecimentos supérfluos.
Mas, então, porque é que a campanha eleitoral é inevitável? Este é a última e derradeira componente do paradoxo. Confesso que já fantasiei várias vezes na possibilidade de saltarmos o período de campanha eleitoral. Como cidadã que se interessa naturalmente por política e acompanha o desenrolar da actualidade, gostaria de saltar directamente do “período normal” para o dia das eleições, sem que existisse uma campanha eleitoral pelo meio. Obviamente, nem todos os eleitores prestam tanta atenção à política de forma regular como eu e muitos utilizam as campanhas como momentos de actualização e informação. Mas, mesmo que todos eleitores estivessem informados de forma regular, a verdade é que no dia em que nenhum candidato fizesse campanha, aquele que começasse, mesmo que em pequenos passos, a fazê-la seria certamente beneficiado eleitoralmente. Essa é tragédia.
P.S. – No contexto de uma campanha pouco entusiasmante e parca do ponto de vista substantivo, faço uma recomendação ligeira de uma série, assumidamente pouco substantiva, do humorista Guilherme Geirinhas, no seu canal de Youtube, chamada “bom partido”, onde o humorista entrevistará todos os líderes políticos. Não é uma entrevista clássica. É puro entretenimento, mas sempre serve para aguentarmos até dia 10.