“O perigo de uma história única” é o tema de uma tedtalk da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie que, a partir dos seus livros, de que é exemplo o romance “Americanah”, aborda questões raciais e de identidade, de preconceito e ignorância e os dilemas e as contradições humanas relacionados com a integração e adaptação a novos mundos e culturas.
Neste discurso, tal como nos romances que escreve, Chimamanda Adichie alerta para o “perigo de uma história única” e para a tendência, que todos temos, de procurar respostas simples, reduzindo a complexidade humana a rótulos e criando narrativas únicas sobre cada pessoa ou cada lugar: “As histórias têm sido usadas para expropriar e difamar, mas as histórias também podem ser usadas para empoderar e humanizar. As histórias podem quebrar a dignidade de um povo, mas as histórias também podem reparar essa dignidade quebrada.”
Quando vi online esta tedtalk há já uns anos lembrei-me de uma workshop de mediação entre jovens israelitas e palestinianos que fiz sobre ‘o diálogo intercultural’ no contexto do conflito israelo-palestiniano. O discurso centrava-se na importância da aprendizagem das diferentes narrativas históricas e como a compreensão da lógica interna de cada narrativa é indispensável para se compreender a origem do conflito e a paralisia que se vive no processo de reconciliação.
Nesta intervenção fiz o exercício de oferecer uma perspectiva israelita e uma perspectiva Palestiniana sobre alguns dos assuntos mais sensíveis e polarizadores da história do conflito, para demonstrar até que ponto é que as duas narrativas sobre os mesmos acontecimentos são diametralmente opostas e até, arrisco a dizer, quase irreconciliáveis.
Entendia eu que, mais do que pôr as pessoas a dialogar, era necessário desconstruir narrativas. Por outras palavras, procurei fazer o que Chimamanda Adichie chama de confrontar as “múltiplas histórias” que coexistem no mesmo lugar, em vez de impor a “histórica única”.
E tudo isto é relevante agora porquê? Porque no contexto nacional, com o protagonismo da causa anti-racista, torna-se cada vez mais central o debate sobre diferentes visões históricas que questionam o imaginário colectivo de um passado glorioso tão presente na identidade e cultura nacionais, nomeadamente no que respeita ao processo de expansão Português, à época dos descobrimentos, à escravatura e à colonização.
Exemplos disso são não só as intensas discussões sobre as narrativas de museus ou revisão dos manuais escolares, mas também, mais recentemente, a comoção causada em torno da fotografia da Deputada Joacine Katar Moreira no salão nobre da Assembleia da República por baixo de pinturas alusivas aos descobrimentos.
Mais uma vez, o que me causa perplexidade neste debate é a forma como tanta gente, supostamente moderada, rejeita peremptória e taxativamente a noção de que há uma narrativa alternativa à dominante, recusa dar espaço à discussão de diferentes ângulos e perspectivas, optando por dedicar toda a sua energia ao ataque e descredibilização de quem questiona e quer debater, à sistemática negação e subestimação dos factos e à falácia das equivalências morais (os países ex-colonizados padecem dos mesmos males que os países colonizadores).
O que provoca tanto desconforto perante o mero pronúncio das palavras ‘colonialismo, escravatura, racismo’? Porquê tanta dificuldade em olhar para a história com sentido crítico? Esperavam o quê? Que os descendentes dos povos escravizados e colonizados adoptassem sem pestanejar uma narrativa que não só não reflecte a sua experiência e memória colectivas, como silencia e invisibiliza a sua história?
Não discuto a importância da identidade nacional como factor de coesão nacional em torno de um projecto político e cultural comum que partilha uma história, uma memória e um sentido de pertença — essencial, creio eu, à sobrevivência de qualquer Estado e qualquer povo. Não acredito que haja culturas superiores ou melhores que outras, apenas diferentes, e essas diferenças merecem ser celebradas e enaltecidas em vez de esbatidas e assimiladas num conceito vago de ‘comunidade global’. Mas o confronto de narrativas, a discussão das diferentes interpretações sobre alguns momentos da nossa história, nomeadamente os mais sombrios, não devem ser sinónimos de traição para com a identidade ou de falta de patriotismo. Antes, fazem parte do processo evolutivo das sociedades, dos povos e da humanidade no seu conjunto. Não se trata de defender o revisionismo histórico, a autoflagelação ou o escrutínio da história à luz de critérios contemporâneos. Nem tão pouco se trata de erradicar da nossa narrativa os principais alicerces da identidade nacional.
Mas a importância de criar espaço para o debate de outras narrativas por parte de sujeitos dessa mesma história, que têm o direito de expor a sua verdade, parece-me indiscutível; trata-se de tornar a nossa história mais inclusiva e fiel às diferentes vivências que coexistem e que caracterizam o tecido étnico-racial e humano da nossa sociedade. Não podemos querer só apregoar ‘no vazio’ generalidades como a interculturalidade, a inclusão e a diversidade se depois não estamos preparados para retirar quaisquer ilações ou consequências desse discurso, e se depois recusamos essa mesma inclusão e diversidade naquilo que de facto importa.
Os contornos da nossa história de (des)colonização e as relações inter-raciais que daí decorreram são muito diferentes da história do conflito israelo-palestiniano, que resulta, em grande parte, de um processo de dissolução do Império Otomano e do fim do Mandato Britânico na Palestina. Mas os perigos de uma história única de que fala Chimamanda são transversais a múltiplos contextos de conflito e tensões inter-raciais e interculturais pois têm como consequência a exclusão de vozes que são essenciais, não só ao processo do diálogo e da reconciliação como ao processo de construção de uma identidade nacional que é efectivamente multicultural e inclusiva. Não querer ver isso é não querer ver o óbvio.