Recentemente escrevi um artigo de opinião sobre o perigo da ‘História única’ no qual defendi que o confronto das diferentes narrativas e interpretações da História não devem ser considerados como sinónimos de traição para com a identidade nacional. Rapidamente se fizeram sentir reacções de dois comentadores que, de tão preocupados com a new left identitarista, se esqueceram de ler o que escrevi. Limitei-me a tentar introduzir alguma objectividade e moderação num debate que polariza a nossa sociedade mas a partir do momento em que utilizei palavras como ‘racismo, escravatura, colonialismo’ fui de imediato catapultada para esse ‘colectivo’ da elite bem-pensante obcecada com a ideologia do politicamente correto e com a ‘trilogia moral progressista.’

O problema da classe política e de muitos opinion-makers do momento é a ânsia com que pretendem atribuir aos outros rótulos e padrões mentais ideológicos segundo mundivisões pré-definidos pelos próprios. Com a pressa de catalogar opiniões ignoram a nuance. Fosse o mundo das ideias e do pensamento assim tão simples. Segundo uma visão prevalecente, de um lado da barricada estão os ‘hipócritas’ do politicamente correto e da ideologia progressista, e do outro, estão os detentores da verdade única. Percebo que quem assuma este combate como prioritário, não entenda, o que procuro escrever e defender.

Mas face às críticas expostas, em particular no artigo de João Pedro Marques, vejo-me obrigada a clarificar o seguinte:

Naturalmente ninguém advoga que se faça da História uma manta de retalhos de experiências subjectivas, não documentadas, apenas assentes no passa-palavra de antepassados ou em leituras ‘emotivas’ da História. O problema do argumento de João Pedro Marques é que parte do pressuposto de que há uma História verdadeira, documentada e objectiva, por um lado, e um conjunto de memórias vagas altamente subjectivas que contrapõem essa História, por outro. O autor assume que a narrativa oficial que nos tem vindo a ser transmitida ao longo dos séculos é repleta de objectividade, isenção e critérios de rigor ao passo que a narrativa alternativa dos mesmos sujeitos dessa História é uma simples leitura emotiva. Então mas a escravatura, o colonialismo, e outros momentos mais sombrios da nossa História, como a Inquisição e as conversões forçadas, não existiram? São falseados? Não há memória recente, documentada, do que foram os efeitos nefastos da colonização para as populações locais? Não existe historiografia documentada e estudos académicos sobre a violência da escravatura ou da Inquisição?

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Dois historiadores podem ter diferentes interpretações sobre a mesma época ambos recorrendo a documentação factual e a exigentes critérios de rigor e nenhum, creio eu, está a falsear a História.

O problema não reside na falta de documentação ou de verdade histórica mas precisamente na narrativa que é veiculada, essa sim muitas vezes fantasiada e subjectiva: o problema reside, também, no (pouco) espaço que é dado ao debate de outros factos, que vêm questionar a ideia de excepcionalidade do colonialismo português como sendo benevolente ou, para dar outro exemplo diferente, como a nossa Inquisição foi menos violenta que a Espanhola.

Vou ilustrar com um simples exemplo caricato: uma imagem do Manual de História e Geografia de Portugal do 5º ano que procura ensinar aos alunos o que é a ‘miscigenação e os mulatos’ evoca uma ideia idílica do encontro entre culturas onde o ‘pai negro’ e a ‘mãe europeia’ de um menino ‘mulato’ surgem, de mãos dadas, felizes, ambos envergando uma indumentária de nobres Europeus da época. Aparentemente nada de errado, mas se pensarmos bem, é legítimo questionar se esta imagem é fiel ao contexto da época no qual ocorreu essa miscigenação. Outro exemplo diz respeito ao destaque que é dado à história da escravatura no espaço público que surge quase como um pequeno efeito colateral da expansão Portuguesa, essa sim o grande foco de destaque na cultura, na literatura, nos museus, nos monumentos e em todo o património alusivo à memória nacional. Outro capítulo da História, da Inquisição e conversões forçadas – um assunto praticamente tabu até há umas décadas atrás –, tem vindo a ganhar mais relevo e reconhecimento público, é certo, mas ainda assim é pouco conhecido, e debatido, pela sociedade em geral. Quando afirmo que determinados capítulos da História assumem pouco destaque na produção da narrativa nacional não me cinjo ao ensino oficial da História nos manuais escolares que tem sofrido, e bem, algumas adaptações e alterações. Refiro-me também a um debate alargado que não existe na sociedade Portuguesa; refiro-me à sua quase total ausência nos museus, em monumentos ou memoriais, na cultura, na literatura, na arte, no cinema. Não vejo incompatibilidades em contar a História dos Descobrimentos e a História da Escravatura, uma vez que ambos fazem parte do nosso património e identidade nacional.

Cada um de nós é livre de fazer a interpretação da História que quiser ou por a tónica no aspecto que considerar mais importante. Mas não podemos apregoar a vontade de promover a integração e a coesão social e inter-racial sem procurar assimilar, e debater amplamente, as diferentes experiências e memórias que coexistem no nosso tecido social. A História não se faz apenas dos momentos gloriosos mas também dos seus ‘passados dolorosos.’ Reconhecer esta necessidade é, a meu ver, um factor de evolução, orgulho e elevação nacional, não é uma tentativa de exercício revisionista da História para fazer um frete à ideologia do politicamente correcto. Há que ter em conta as diferenças e a nuance do discurso.