As ideias recentemente apresentadas pelo presidente francês Emmanuel Macron e pelo presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, para criar uma “Comunidade (geo)política europeia” marcam o início de uma reflexão coletiva sobre o alcance geopolítico da EU. O contexto regional de guerra no continente europeu, aliado a uma rivalidade geopolítica global entre as grandes potências e uma “mudança tectônica na história europeia” em curso, tornam propostas para repensar o relacionamento da UE com a sua vizinhança a leste, ainda mais oportunas.

Há de facto motivos para concluir que os atuais arranjos institucionais não conseguem dar uma resposta adequada a estes novos desafios, decorrentes da invasão da Rússia à Ucrânia, nomeadamente o de contribuir para restaurar a paz e a estabilidade no continente. Paralelamente, ideias para superar a atual paralisia no alargamento da UE aos Balcãs Ocidentais, também são bem-vindas. Mas por uma questão de clareza, essas são duas discussões separadas que devem ser tratadas como tal.

Propostas para criar uma Comunidade (geo)política europeia tratam de juntar países aliados que partilham os mesmos valores para abordar as consequências de uma nova realidade de segurança. Resolver o atual impasse no alargamento da UE implica superar os obstáculos nas negociações de adesão com os países candidatos a membros. Este último é sobre processos, critérios, condicionalidades e reformas. Ao contrário do primeiro, não trata de grandes visões sobre o papel da Europa na nova ordem global.

Se os líderes Europeus pretendem que a ideia de Comunidade (geo)política europeia seja seriamente considerada no debate Europeu, a sua discussão deve ser dissociada da reforma do alargamento. Caso contrário, continuará a ser descartada pela comunidade política como uma tentativa oculta de oferecer uma alternativa à adesão à UE.

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O que dizem as propostas?

No rescaldo da guerra na Ucrânia, Macron avançou a ideia de criar uma Comunidade Política Europeia, à qual se seguiu uma proposta semelhante de Charles Michel de uma Comunidade Geopolítica Europeia. Estas propostas surgiram a par dos pedidos de adesão da Ucrânia, Moldávia e Geórgia, ganhando, assim tração na imprensa e no debate Europeu sobre o alargamento. Mas nenhum dos líderes se deteve em detalhes, desencadeando assim muita especulação sobre as suas reais intenções e propósitos. As últimas conclusões do Conselho Europeu pouco esclarecem, mas referem a ideia de criar uma Comunidade política europeia para concluir que “tal quadro não substituirá as políticas e instrumentos existentes da UE, nomeadamente o alargamento”.

A resposta geopolítica a uma nova realidade de segurança

Embora alguns críticos tenham rapidamente descartado essas ideias como “ofertas de segunda-classe” para aderir à UE, elas precisam de ser entendidas no contexto regional e global mais amplos da guerra na Ucrânia. No ambiente geopolítico cada vez mais contestado de hoje, a UE precisa de novos instrumentos, para além da política de alargamento, para ancorar a estabilidade na sua vizinhança e alargar o seu alcance geopolítico. Como afirmou explicitamente Emmanuel Macron, o objetivo primordial desta comunidade seria preencher um vazio estratégico e geopolítico e estabilizar o continente. Charles Michel propôs uma formulação semelhante, acrescentando que a sua visão de uma comunidade geopolítica “se estende de Reykjavik a Baku ou Yerevan, de Oslo a Ancara”.

A UE já não pode confiar exclusivamente no incentivo da adesão para envolver os países da sua vizinhança alargada. Novas estruturas serão necessárias para lidar com uma nova realidade de segurança. Por um lado, porque apesar da perspectiva de adesão ser promissora para muitos, nem todos os países europeus querem aderir à UE. Por outro, porque em tempos de crise que exigem capacidade célere de ação e decisão, não é viável fazer depender uma estreita coordenação política entre democracias Europeias do processo complexo e demorado que as negociações de adesão à UE exigem.

A este respeito, uma Comunidade política europeia é uma ideia que merece atenção. Reuniria estados da UE, candidatos a membros e outros países europeus (por exemplo, Reino Unido, Islândia, Noruega, Suíça) em torno da mesma mesa para coordenar politicamente a resposta aos desafios mais prementes com que se confronta a Europa – desde a geopolítica europeia até à defesa, a questões energéticas, à infraestrutura, segurança alimentar, conectividade e livre circulação de pessoas. Uma aliança europeia de democracias que partilham os mesmos valores, liderada pela UE, também contribuiria para o objetivo de tornar a União mais geopolítica e assertiva no panorama global.

Uma UE a várias velocidades?

Mas embora a dimensão geopolítica das duas propostas seja importante, o debate em torno delas suscitou novamente a especulação de que uma União “a várias velocidades” estaria também a ser contemplada pelos líderes Europeus. E é aí que a relação entre uma comunidade política, por um lado, e a política de alargamento em curso, por outro, se torna confusa. A propósito deste debate, vários observadores traçaram paralelos entre a proposta de Macron e a antiga ideia que o ex-presidente francês François Mitterrand, lançou em 1989, de criar uma Confederação Europeia. O objetivo dessa confederação seria unir politicamente os países europeus após a queda do Muro de Berlim. Segundo concebida por Miterrand, esta confederação seria organizada em círculos concêntricos – nos quais os Estados membros se colocariam em função do grau de integração de cada país com as políticas da UE.

O conceito de uma Europa a vários níveis implica mais do que mera coordenação política entre aliados, levantando assim a questão de esclarecer se quando os líderes propõem uma Comunidade política europeia, têm em mente uma “Europa à la carte” em que cada país decide aderir em função do que lhe convém. Uma Europa a várias velocidades implica diferentes níveis de cooperação e integração em programas da UE para todos os países que desejam aderir, dependendo do ritmo de cada estado e do respetivo grau de alinhamento com as políticas da UE.

Tais configurações provavelmente relegariam alguns membros para a margem do grupo central da UE. Embora isso não seja necessariamente um problema em si, é precisamente essa linha tênue onde termina a coordenação política e começa a integração nos programas da UE que suscita preocupações. As declarações de Macron de que “podemos não morar todos na mesma casa, mas partilhamos a mesma rua” alimenta o ceticismo de que essas estruturas estejam a ser concebidas de forma a relegar indefinidamente os Balcãs e outros candidatos da UE para a “sala de espera”.

A reforma do alargamento também é necessária?

Além disso, tem também ressurgido um debate paralelo sobre a reforma do alargamento da UE para ultrapassar os impasses nas negociações de adesão em curso. A par da sua proposta de uma Comunidade geopolítica europeia, Charles Michel apelou igualmente a que se considerasse uma reforma da política de alargamento, sugerindo uma integração mais rápida, gradual e faseada dos membros candidatos à UE. Na prática, isso traria benefícios imediatos para os países candidatos durante as negociações de adesão, em vez de esperar até ao final do processo para oferecer recompensas e benefícios. A integração far-se-ia “au fur et à mesure” e não apenas no final da jornada que na maioria dos casos demora anos, senão décadas.

Mas se o momento atual convida a pensar fora da caixa em formas de revigorar o processo de alargamento, a proposta de Michel parece apenas repetir ideias já cuidadosamente desenvolvidas e negociadas na nova metodologia do alargamento aprovada pelos Estados membros em março de 2020. Esta nova abordagem coloca maior ênfase na condicionalidade, mas também contempla a introdução gradual dos países candidatos às políticas, mercados e programas da UE. No entanto, a nova metodologia ainda não viu a luz do dia devido à sistemática obstrução da Bulgária em progredir com as negociações de adesão da Macedônia do Norte (e, indiretamente, da Albânia) que finalmente foram desbloqueadas na sequência do último Conselho Europeu (Junho 2022) após uma proposta apresentada pela Presidência Francesa.

Equacionar mais uma reforma antes de dar uma oportunidade à nova abordagem adotada em 2020 parece contraproducente e redundante. E apesar das tentativas de transformar o processo de alargamento num exercício mais flexível, gradual e específico para cada país possam fazer sentido, elas não abordam o elefante na sala: a responsabilidade que alguns Estados membros têm desempenhado na paralisia das negociações de adesão por motivos que têm mais a ver com as suas agendas internas do que com o progresso nas reformas conduzidas pelos candidatos. Em vez de colocar o ônus todo da responsabilidade nos candidatos a membros, os líderes da UE deviam incutir maior vontade política em prol do alargamento e superar as diferenças internas no dossier. Tal contribuiria também para restabelecer a credibilidade no processo de alargamento para os Balcãs, que muito tem sofrido nos últimos anos e tornaria esta uma perspectiva realista para a Ucrânia, a Moldávia e a Geórgia.

O diabo está nos detalhes

No decorrer dos próximos meses, em que os líderes Europeus se preparam para discutir os contornos e os detalhes da Comunidade política europeia em Praga, é essencial esclarecer a natureza e o propósito desta proposta. Criar uma Comunidade política europeia e quebrar o impasse no processo de alargamento não são exercícios que se excluem mutuamente. Ambos são igualmente relevantes, mas merecem discussões separadas. Se o objetivo é discutir o primeiro, então a sua consideração deve ser dissociada da reforma do alargamento, para que não seja interpretada pelos países candidatos, nomeadamente a Ucrânia, a Moldávia e a Geórgia, como um apelo morno à sua adesão. Simultaneamente, os líderes da UE devem trabalhar para revitalizar o processo de adesão, mas reconhecendo abertamente o seu papel no atual impasse e evitando a tentação de reinventar a roda.

Seja qual for o caso, a falta de clareza alimenta um debate equivocado e polarizador. Propostas para a criação de uma Comunidade política europeia tratam de reformular a relação da UE com o continente europeu num contexto da guerra. Nos tempos que correm, seria uma pena reduzir esta discussão vital a uma dicotomia simplista a “pró ou contra” o alargamento, que é a discussão que a Comunidade política tem vindo erradamente a incentivar. Mais importante é a dimensão geopolítica das propostas em questão, que infelizmente tem passado despercebida nesta discussão.