1 Vinte anos depois do 11 de Setembro de 2001, a imprensa nacional e internacional acaba de prestar justa homenagem às vítimas civis inocentes, cerca de 3 mil, dos atentados terroristas vilmente perpetrados por fundamentalistas islâmicos contra o que designaram como “símbolos da corrupção inerente à democracia e ao capitalismo norte-americano”.

A homenagem foi naturalmente acompanhada por inúmeros artigos de opinião de vários analistas sobre o que se passou desde então. Como é timbre das democracias liberais, que os fundamentalistas islâmicos vilmente atacaram no 11 de Setembro, as opiniões foram diferentes e plurais. Gostaria de acrescentar a esse debate a minha humilde, mas firme, opinião.

2 Muitos analistas têm discorrido sobre os erros cometidos pela resposta americana aos atentados de 11 de Setembro. Uns falam do Iraque, outros da Síria, e muitos em comum referem a chamada “ambição imperialista” americana de exportar a democracia para culturas em que a democracia é vista como um produto estrangeiro.

Tudo isso é muito interessante e seguramente tema para uma prolongada conversação. Mas talvez valha a pena recordar alguns detalhes empiricamente testáveis:

Em primeiro lugar, a 11 de Setembro de 2001, a democracia liberal americana foi alvo de um ataque terrorista sem precedentes — ainda por cima contra civis inocentes e utilizando aviões civis com civis inocentes. As mais elementares regras de decência, mesmo em condições de guerra (que não tinha sido declarada), foram flagrantemente violadas. Em resposta, os EUA invocaram o Artigo 5º da NATO e desencadearam uma inteiramente legítima resposta conjunta, invadindo o Afeganistão.

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Em segundo lugar, a invasão do Afeganistão pelas tropas americanas e da NATO teve retumbante sucesso e de facto conseguiu derrotar os talibãs. Ainda que Bin Laden só tenha sido eliminado mais tarde, no Paquistão.

Em terceiro lugar, durante os 20 anos que se seguiram à entrada ocidental no Afeganistão, registou-se uma empiricamente verificável melhoria das condições de vida locais.

3 Terão sido cometidos muitos erros pela América e pela NATO nos 20 anos decorridos após os atentados terroristas de 11 de Setembro. Depois dos factos ocorridos, as previsões dos analistas sobre o passado são seguramente bastante seguras. Mas talvez percam de vista o essencial:

E o essencial, creio, é que a humilhante retirada das tropas americanas e ocidentais do Afeganistão não se deveu a qualquer alegado fracasso da presença militar ocidental no Afeganistão. Não houve qualquer fracasso nessa presença — o humilhante fracasso ocorreu na retirada, isto é, quando a presença militar ocidental foi abruptamente cancelada.

Mais crucial ainda, a decisão da retirada não se deveu a qualquer situação de emergência ou de derrota que as tropas ocidentais enfrentassem no terreno. A situação militar era relativamente tranquila e estava sob controlo ocidental.

4 Por outras palavras, se a retirada americana e ocidental não foi devida a uma situação de emergência militar, então foi devida a quê?

Tenho dito aqui, e repito sem hesitação, que a retirada foi devida ao “abaixamento do olhar” que está a ser produzido no Ocidente pela emergência de tribalismos populistas rivais. A gritaria incivilizada que produzem por todo o lado (sobretudo, segundo me dizem, porque não frequento, nas chamadas “redes sociais”) é apenas a expressão mais patente e grosseira de um fenómeno mais fundo e mais grave: o abandono — ou esquecimento, ou, mais provavelmente, a simples ignorância — dos valores ancestrais do Ocidente e da democracia liberal.

5 À direita, temos tido o sr. Trump, que nunca abotoa o casaco, e cujas maneiras estridentes e chocantemente vulgares nunca seriam admitidas num Gentlemen’s Club. O seu discurso foi e continua deseducadamente agressivo para com todos os que não lhe prestam vassalagem, incluindo os que ainda resistem no interior do Partido Republicano —ao qual, aliás, o sr Trump é apenas um recém-chegado. O tema central, praticamente único, do seu discurso (se é que chega a haver discurso) é o ataque à democracia liberal americana, que acusa de ser uma máscara para a chamada “opressão do povo pelas elites” (político-partidárias, financeiras e universitárias).

Sustento sem hesitação que foi esta grosseira hostilidade contra a democracia liberal que o levou a pactuar com (para não dizer alimentar) o vergonhoso assalto ao Capitólio, em Janeiro passado. E foi esta mesma hostilidade contra a democracia liberal que o levou a negociar vergonhosamente com os talibãs a retirada do Afeganistão — chegando ao ponto de aceitar a exigência talibã de excluir das negociações o governo do Afeganistão.

6 À esquerda, por seu turno, temos o sr. Biden — que, pelo menos, abotoa sempre o casaco e tem maneiras educadas. Mas, na desastrada retirada do Afeganistão em que aplicou o plano do sr. Trump, revelou-se refém da ala esquerda do seu partido democrático. Esta ala esquerda é aliás chefiada por outro recém-chegado sem maneiras (neste caso até sem casaco e sem gravata) que se declara “socialista” e passou a lua de mel em Cuba (dizem-me que se chama Bernie Sanders).

E o que diz esse sr. Sanders? Basicamente, o mesmo que o sr. Trump, mas com um tom de esquerda: que a democracia liberal americana e ocidental é uma máscara para a chamada “opressão do povo pelas elites” (neste caso sobretudo “imperialistas”, “capitalistas” e “homens de raça branca”, mas também político-partidárias e universitárias). Em nome destes slogans, patrulhas de activistas radicais (auto-designadas woke) atacam estátuas, cancelam palestras e perseguem todos os que não lhes prestam vassalagem — numa versão hard-core, aliás, da gritaria das patrulhas do sr. Trump.

7 Toda esta situação é grave e certamente não deve ser menosprezada. Mas também não é preciso dramatizá-la. Em Fevereiro de 1933, na Oxford Union, uma célebre moção foi aprovada dizendo “This House would not in any circumstances fight for King and Country”. Winston Churchill terá dito que a resolução da Oxford Union era “abject, squalid, shameless and nauseating”. Acredito que ele tinha toda a razão. Mas, seis anos depois, a nação britânica, incluindo os imensos voluntários da Universidade de Oxford, bem como os democratas em todo o Ocidente, assumiram corajosamente a defesa da democracia liberal — “o pior regime, com excepção de todos os outros”, como Churchill declarou no Parlamento britânico, durante a hora mais negra.

Post Scriptum: Homenagem a Jorge Sampaio. Tem sido muito tocante e comovente a homenagem nacional ao recém falecido Presidente Jorge Sampaio. Dos mais diferentes quadrantes políticos, à esquerda e à direita, vozes plurais convergem no elogio à sua disposição pluralista, moderada e tolerante. Era acima de tudo um homem bom, como tem sido sublinhado em tantos depoimentos tocantes — sobretudo, creio, no tremendamente comovente texto de Helena Barroco no jornal Público de sábado (identificada como “Assessora de Jorge Sampaio”, que não creio ter o privilégio de conhecer pessoalmente). Na pluralista homenagem a Jorge Sampaio, acredito estarmos a partilhar uma homenagem à democracia liberal — o pior regime, com excepção de todos os outros.