O “Diário de Notícias”, que passou os últimos tempos escondido num “site” que ninguém visitava, ressuscitou em papel. Fazia falta. Manifestamente, cinco estações televisivas, duas ou três rádios, duas ou três revistas e diversos diários e semanários não chegavam para exaltar a competência e a integridade do governo, cujas proezas exigem cobertura vasta, ou pelo menos proporcional aos subsídios distribuídos. Logo na primeira edição da sua nova incarnação, o “DN” promete. E cumpre. Artigos de “opinião” de actuais ministros e ex-ministros. Artigos de “opinião” de admiradores dos actuais ministros e ex-ministros. Uma fascinante entrevista com a comissária europeia Elisa Ferreira. E, claro, uma sondagem que mostra o apoio dos portugueses à acção governamental contra a Covid: “nota positiva”, dizia a manchete, com a palavra “positiva” aumentada até quase transbordar da página. O dr. Costa publicou logo um “tweet” a confessar a “grande felicidade” que sentiu ao segurar o fresquíssimo “DN”. E o “DN” publicou uma notícia a dar conta do “tweet” do dr. Costa.
Parece anedota. E é. O país desceu a tais abismos de descaramento que se torna muito difícil distingui-lo de uma rábula de revista. A única diferença é que o público da revista tinha noção das circunstâncias e ria. Hoje, os portugueses não notam que estão perante um espectáculo de burlesco, e levam o espectáculo a sério. E levam a sério os protagonistas do espectáculo. E levam a sério o “DN”. E respondem a sério às sondagens do “DN”. E, incrível e maravilhosamente, gostam a sério do que lhes calhou em sorte. Daqui a três semanas, uma parte significativa do eleitorado reelegerá o prof. Marcelo com larga folga. Se amanhã houvesse “legislativas”, o PS ganharia sem problemas. Depois de tudo e apesar de tudo. O desempenho do prof. Marcelo e do dr. Costa nestes cinco anos devia levá-los a perder em popularidade para “Tino” de Rans, Gungunhana ou um edredão às riscas. Misteriosamente, não levou, e a supressão da oposição, dos “media” e, em suma, do escrutínio “formal” não esgota as explicações.
Para lembrar um exemplo recente, nenhuma pessoa saudável carece de ajuda partidária ou jornalística para perceber o carácter repulsivo e insultuoso da encenação alusiva às vacinas. Que eu saiba, não houve lugar no Ocidente em que membros do governo se plantassem na chegada da primeira remessa e, de seguida, na administração da primeira dose. Excepto por cá, escusado dizer, onde a ministra da Saúde e uns penduricalhos anexos prendaram ambos os “momentos históricos” com a sua inestimável, e assaz útil, presença, para cúmulo sem particular “distanciamento social” ou moral. Em países comuns, o processo de vacinação requer organização, rapidez e eficácia. Aqui, basta a dona Marta, umas câmaras de tv e uma audiência de pasmados incapazes de separar o que é informação do que é propaganda e uma radical ausência de vergonha.
Em 2021, os pasmados terão 365 dias para continuar a ignorar a propaganda, as negociatas, as restrições, as humilhações, as mentiras, as fraudes, as mortes por Covid, as mortes pela “estratégia” de “combate” à Covid, as falências, o empobrecimento e a firmeza com que Portugal caminha para os fundilhos dos fundilhos da Europa, material e simbolicamente. Porém, se eu fosse a eles, aos pasmados, aproveitaria o ano para ignorar uma questão em particular: o sucesso do nosso “plano” de vacinação. A coisa já começou bem, com as aparições da dona Marta, a facilidade com que toda a gente descobriu o local “secreto” de armazenamento das vacinas, o debate entre PSP e GNR sobre a força habilitada para escoltar uns frasquinhos e a mensagem no telemóvel a esclarecer-nos de que seremos vacinados na 3ª fase que é logo após a 2ª. Daqui em diante, a coisa irá melhorar.
Por mim, tenciono ocupar 7% do meu ócio a visitar a página ourworldindata.org/covid-vaccinations. É rica em dados e será bilionária a exibir, com números, factos e tabelas, a dimensão do atraso pátrio e a dimensão da burla perpetrada pelos senhores que mandam nisto. Até ver, Portugal vacinou 16 mil cidadãos, contra perto de 3 milhões nos EUA e um milhão no Reino Unido. Qualitativamente, temos 0,16% da população vacinada, contra 0,84% nos EUA e 1,47% no Reino Unido – e 11,55% em Israel. Por enquanto, nada de grave ou especial. Mas é um aperitivo. E um forte indício que, à medida que 2021 avança, avançará, também neste critério, o fosso que nos separa da civilização, e ficarão ainda mais nítidas a inaptidão e a desonestidade dos caipiras que nos pastoreiam. Como o critério é claro e a página permite comparações imediatas, prevejo diversão prolongada. E depressão profunda. Ou seja, a minha decisão de Ano Novo é contemplar, através de vacinas e percentagens, o desastre para que nos lançaram, nas vacinas, nas percentagens e no resto.
Infelizmente – ou felizmente, sei lá – não serei acompanhado por boa parte das vítimas do desastre, leia-se os pasmados, demasiado ocupados a fugir da realidade, a acompanhar as conferências da DGS, a cumprir as ordens que perpassam pelo cocuruto do dr. Costa, a votar no prof. Marcelo, a aplaudir sucessivos estados de emergência, a ser tratados como animais e a ler no “DN” acerca destes delírios e outros evangelhos do poder vigente. Estou a brincar: nem os pasmados lêem o “DN”.