Começou com um cartaz contra as grandes empresas. Representando os líderes de quatro grandes empresas (Santander, GALP, Pingo Doce e Continente), cuja imagem aparece cortada pelos olhos, o BE perguntava: “os lucros deles ou a nossa vida?”. A mensagem garrafal sobre fundo vermelho não tinha como ser mais explícita: diabolizar os “patrões”, apontar o dedo às elites económicas e assentar a sua visão dos desafios sociais numa dicotomia violenta de vida ou morte: ou eles ou nós.
Continuou com um novo cartaz sobre a Habitação. Ao lado do retrato da líder Mariana Mortágua, lia-se: “não lhes dês descanso”. Por detrás do “lhes” está um “eles”: os senhorios, os proprietários, os que investem no imobiliário, os que reabilitam os seus imóveis para os valorizar (e eventualmente vender), os grupos hoteleiros que se querem instalar nos centros do turismo nacional. No mundo normal, chamar-lhes-íamos cidadãos, famílias e empresários. Na linguagem do BE, são os “especuladores”. Tal como contra as elites económicas, na Habitação o BE inventou um combate mortal entre “nós e eles”, mostrando que já tem os dois pés assentes no terreno do populismo.
De seguida, apareceu em faixas. Também sobre Habitação, mais recentemente no Porto, dirigentes do BE marcharam ao lado de manifestantes que ergueram faixas com mensagens de ódio: “não queremos ser inquilinos de sionistas assassinos” e “Nem Haifa, nem Boavista, fora o capital sionista”. Nenhum dirigente do BE se demarcou destas mensagens anti-semitas e inequivocamente xenófobas contra empresários israelitas — pela única razão de serem israelitas. Pior ainda: no site oficial do BE, surgiu um artigo de repúdio às críticas que tais faixas geraram (por exemplo, de Francisco Assis), sob o argumento de que o “capital israelita aumentou a pressão imobiliária no Porto”. Pelos vistos, o BE nem se apercebe do tom xenófobo nas suas explicações, que atingem indivíduos israelitas e não ao Estado de Israel (como alegam debaixo do falso estandarte do anti-sionismo). Pelos vistos também, o BE não se arrepia com um discurso de má memória, que associa os israelitas/ judeus ao grande capital, passando qualquer linha vermelha de xenofobia e anti-semitismo.
Por fim, surgiu nas declarações de Mariana Mortágua. Há dias, numa acção de campanha em Coimbra, Mariana Mortágua atirou contra a banca, qualificando os bancos de “parasitas da sociedade” e “parasitas financeiros dos salários”. Não será necessário ter lido muitos livros de História para reconhecer que a própria expressão é extremista, contém uma conotação desumanizante e carrega um passado negro. As ideias e a linguagem importam muito na política. E quem utiliza a expressão “parasitas” para desqualificar indivíduos está inevitavelmente a adoptar o tom das mais violentas perseguições sociais de que há memória na Europa.
Poderia ser um excesso retórico pontual (quem nunca?). Mas o recurso reiterado a esta linguagem de matriz populista revela que é opção deliberada e estratégica: hoje, a linguagem populista, persecutória, xenófoba e promotora de conflito social descodifica a visão do Bloco de Esquerda para os desafios sociais nacionais — dos baixos salários à crise da habitação. Deveria ser escusado dizê-lo, mas a falta de bom senso impõe que se insista no óbvio: o caminho escolhido pelo BE fragmenta o tecido social, diaboliza quem pensa diferente, moraliza a discussão e converte qualquer adversário num inimigo mortal. Numa palavra, é anti-democrático.
Por tudo isto, talvez seja um bom momento para retirar duas consequências. Primeira: o que distingue a retórica do BE da que André Ventura tantas vezes utiliza? Nada: o populismo é populismo, venha de onde vier. Segunda: se assim é, e se o CH está fora de entendimentos pós-eleitorais à direita, não deveria o mesmo acontecer à esquerda entre BE e PS? Há que clarificar o relacionamento do PS liderado por Pedro Nuno Santos com os antigos parceiros da geringonça — actualmente, um BE (ainda mais) radicalizado e um PCP apoiante de Putin.
Entretanto, o país que reflicta: já que o radar anti-populista anda sempre a apitar em relação ao CH (e ainda bem), por que razão não alerta para os excessos do BE? A democracia portuguesa ganharia se se prestasse alguma atenção ao precipício à beira do qual o BE se debruça.