Nos 50 anos do 25 de Abril e nos 500 anos de Camões é, curiosamente, porventura possível relacionarmos os dois e apresentarmos uma interpretação do momento presente. Proponho para tal caminho a análise da resignificação cultural da expressão ‘Portugal Profundo’. Falta-nos pesquisa científica sobre a expressão ‘Portugal Profundo’: não se encontra nada no RCAAP. A hipótese é que as inflexões de tal expressão se podem entender em função de uma cronologia que vai da ideia de 1. Mito e de transmutação à de 2. Paisagem incomunicável e tecnocracia e à de 3. Vária rural e deriva.

1. Mito e transmutação

Há um movimento artístico-científico-filosófico que se estabelece no intervalo temporal que vai do 25 de abril de 1974 a meados da década de 80, centrando-se em mitos e ritos portugueses, numa leitura de crise de identidade nacional e defendendo a necessidade de transmutação/transcendência que implicaria uma pesquisa em narrativas essenciais portuguesas: mitos ou ‘mitolusismos’.

Esse movimento colocou, numa constelação, uma certa antropologia (a área da Mitanálise de Gilbert Durand), filósofos e ensaístas como António Quadros, Eduardo Lourenço, Agostinho da Silva e artistas como Lima de Freitas (pintor e ilustrador da obra de Camões e Pessoa). A expressão ‘Portugal Profundo’ tem aqui um sentido evidente pois muitos destes autores procuraram nos arquétipos quer a identidade portuguesa e os seus paradoxos, quer uma solução de futuro: um rumo para o país. Este movimento alimenta-se dos nossos grandes poetas, como Camões e Pessoa, mas também de toda uma reflexão literária-ensaística e filosófica sobre Portugal que tem uma tradição no padre António Vieira, em Teixeira de Pascoaes, António Sérgio entre outros.

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De formas diferentes, mas convergentes, vários destes autores abordam o ‘Portugal Profundo’: Durand com os seus ‘Mitolusismos’ procura a “memória tangível de uma Terra “imaginal” de uma alma «popular» – isto é, a alma de um povo (…)”; António Quadros escreve especificamente ‘Ó Portugal Ser Profundo’ e sobre Lima de Freitas, por exemplo, Teresa Lousa escreveu que das suas pinturas ‘irrompe de um Portugal profundo e gnóstico’. Os argumentos seriam muitos mas este texto não é uma tese. O que se pode dizer é que havia um desejo alquímico (como o próprio Lima de Freitas escreveu) de transformar o chumbo (do presente) em ouro, procurando no passado e nos arquétipos a fórmula para tal. Todas as culturas se definem por relações ‘nós vs outros’ mas em momentos de transição, tornamo-nos outros para nós mesmos e é tal situação que espoleta esta reflexão artístico-filosófico-antropológica.

2. Paisagem incomunicável e tecnocracia

Em 1985 Cavaco Silva inicia o 1º mandato como primeiro-ministro e em 1986 Portugal entra para a CEE e o ‘Portugal Profundo’ inicia uma inflexão. Um momento charneira para a resignificação do ‘Portugal profundo’ dá-se já em contraciclo (o que é comum), ou seja, em 1994, quando Cavaco Silva vem do Pulo do Lobo (no Alentejo interior) e diz aos jornalistas que esteve ‘incomunicável’ no ‘Portugal Profundo’, aparentemente para se escusar comentar, o que não é somenos, as palestras ‘Portugal e o Futuro’, organizadas por Mário Soares. Talvez haja outros momentos, mas este parece-me ser o mais claro em que um ‘Portugal Profundo’ dos arquétipos e da transmutação dá, de repente, lugar a um mero empirismo geográfico-sociológico: o ‘Portugal Profundo’ passou a ser o interior, despovoado: uma paisagem não humana, um lugar ermo e incomunicável. E esse vazio não deixa de ser uma leitura da história e da desculturação.

A Europa vingou como ligação primordial, assim como a tecnocracia e o pragmatismo. Creio que ninguém mais se lembrou que o ‘Portugal Profundo’ pudesse significar outra coisa qualquer que não ‘o resto’, ‘a paisagem’, obviamente por oposição implícita às grandes cidades ou, mesmo, à única pretendida grande cidade: Lisboa. É muito interessante essa transmutação pela negativa da expressão ‘Portugal Profundo’ que, de uma carga cultural imensa, que se fossemos capazes de ler como país seria passível de impulsionar uma transcendência (era essa a ideia daquele movimento), passa para uma significação que não é senão a de vazio, não só cultural mas mesmo de pessoas. Eduardo Lourenço (em 2001 num discurso) ainda tentava que a transcendência não se perdesse, sobrepondo os dois sentidos: “Esta Beira foi o Portugal profundo, o Portugal do arado, da cruz e da espada confundidas como era lei do tempo, terra e gente em luta com uma natureza avara, ganhando com suor e sangue o que ninguém lhe dava de graça, e sempre pronta para ir não para o mar mas além dos mares, para sítios que nem os sonhos avistam, fosse o Brasil, fosse o Oriente, fosse a Austrália, fosse o Canadá.”. Talvez tenha sido a última tentativa.

3. Vária rural e deriva

Em 2005, Sócrates inicia o seu primeiro mandato como primeiro-ministro e, em dezembro do mesmo ano, Manuel Alegre elege “a desertificação no Portugal profundo interior” como uma das suas bandeiras como candidato às presidenciais de 2006 ao mesmo tempo que apelava à reinvenção da identidade nacional em face da globalização. Não é certo que este seja o momento charneira de inflexão mas é provável que seja um deles. O ‘país político’, da propaganda, não coincide com um ‘país real’, já tecnocrático-patológico, e o ‘Portugal profundo’ vai-se evidenciando de forma variada. A crise de 2010 a 2015 acelerou tal problema.

Se fizermos uma análise de conteúdo ao material digital relativo à expressão ‘Portugal Profundo’, encontramos grandemente peças jornalísticas que abordam o interior, o despovoamento, a pobreza e mesmo um certo miserabilismo associado ao passado. Por vezes, uma associação a pequenos rituais (o pão por exemplo) aos quais se tenta colar a ideia do autêntico. Numa peça recente utiliza-se mesmo (sem ironia) a expressão ‘Portugal Profundo’ para abordar as grutas! A passagem da discussão do ‘Portugal Profundo’ dos filósofos e artistas para os políticos e, mais recentemente, profusamente para o discurso jornalístico (numa tese poder-se-ia fazer a análise com tempos certos de tais discursos) é a evidência clara da própria situação de Portugal: de como a tecnocracia nos levou a um empirismo ridículo ao nível do pensamento e a um administrativismo ao nível da acção. Os meios passaram a ser fins em si mesmo e caímos num rame-rame sem rumo: uma deriva.

É verdade que ainda se pode descobrir em peças jornalísticas actuais ressonâncias do ‘Portugal Profundo’ daquele movimento que deu sentido à expressão. Autores, várias vezes centrados nas Beiras, descobrem um ‘território dos cinco elementos’ evocando o Quinto Império e António Vieira e Agostinho da Silva ou outros. Mas estes exemplos não são mais que ressonâncias de facto, e por serem sobre espaços muito específicos, e não já uma reflexão sobre o país, não passam de um folclorismo também do tal ‘Portugal Profundo’.

É provável que se possa ler toda esta cronologia como fases do luto, do luto por um país que se perdeu, por um país perdido. Na constelação cultural que se segue ao 25 de Abril, temos a consciência de ruptura cosmogónica, numa lógica de ‘eterno retorno’, ou seja, de possibilidade de voltar a um real essencial revigorador e capaz de indicar um rumo. Em termos de fases do luto, significa uma negação e revolta: a constatação de um Portugal que parece já não existir e a necessidade de transmutação e transcendência. Já com o início da legislatura de Cavaco Silva em 1985 e a entrada na CEE em 1986 começa uma fase de racionalização: teríamos encontrado o nosso novo lugar no mundo, os horizontes alargavam-se de novo, o capital entrava e a tecnocracia tornava-se mais importante que a ideologia. Em suma a necessidade de transcendência ou transmutação e a saudade de nós próprios era esquecida ou pelo menos emudecida por um efeito de compensação. Mas tal compensação não durou muito tempo e a Europa (mesmo para os mais europeístas) parece trazer mais a alguns políticos portugueses do que a Portugal, pelo menos em termos de rumo. Não é certo termos decidido qual o papel de Portugal na Europa. E, depois, não podemos esquecer que Portugal, para além de europeísta é atlantista, africanista e lusutopista.

A ausência de um rumo estratégico para o país é concomitante da ausência de verdadeiras lideranças. Tal não quer dizer que não as tenhamos, mas que as impedimos ao termos criado um sistema tecnocrático dominado pela mediocracia e dedocracia, um sistema que tem aversão à reflexão, à ciência (excepto aquelas que resultam em produtos ou tecnologia) e até à cultura em geral, ainda que sempre em favor de uma qualquer aparência folclórica da mesma. A ausência de um ‘Portugal Profundo’ reflectido faz com que o nosso motor dependa sempre de um influxo externo e, por isso, funcione aos repelões. De facto, é um motor que está a gripar de tanto start-&-stop, está em exaustão de tantas esperanças e desalentos.

Camões morreu no ano em que Portugal perdeu a sua independência: 1580. Diz-se que Filipe II quando chegou a Lisboa perguntou por Camões porque queria conhecer aquele visionário. Infelizmente para o ‘Rei Estrangeiro’ o visionário tinha já morrido, na miséria. Quando não temos lugar para os visionários não temos país ou, como disse Lima de Freitas, “O símbolo é como um «quantum» de energia que garante à imagem a velocidade necessária para escapar à queda na «actualidade» onde se desfaz”.