Esta semana, Ursula von der Leyen fez o seu discurso anual sobre o Estado da União no Parlamento Europeu. Ao contrário dos anos anteriores, em que o foco foi compreensivelmente quase exclusivo na questão Ucraniana, este ano von der Leyen decidiu também proferir algumas palavras sobre matérias económicas, num discurso apelidado de “pro-business”. Anunciou que pretende não só consertar a economia Europeia, que parece estar numa conjuntura negativa, com previsões de abrandamento económico juntamente com persistência de níveis de inflação elevados, mas também dar prioridade a recuperação da competitividade da economia Europeia. Para isso, anunciou a nomeação de Mario Draghi como seu special adviser, a quem encomendou um estudo sobre o futuro da competitividade na União Europeia. “It is time to make business easier in Europe”, nas palavras da chefe do colégio de comissários.
Claro que, nestes discursos, nunca se admite a existência de um problema gravíssimo de forma directa. No entanto, nas entrelinhas, percebemos que estas palavras representam uma mudança face ao discurso dos últimos anos. Alguns interpretaram a mudança como sinal de que o partido da actual comissária, o Partido Popular Europeu, de centro-direita, quer cultivar apoio junto da indústria e do sector privado antes das eleições Europeias que decorrerão no próximo ano. No entanto, penso que esta não é a única razão. As palavras de von der Leyen, por enquanto muito subtis, resultam também da consciência crescente de que há um problema mais estrutural de competitividade e crescimento económico na Europa. Este problema não é apenas conjuntural. É, isso sim, uma questão que, ao longo dos últimos meses, tem vindo a ganhar espaço crescente na imprensa internacional e terá certamente a atenção das elites económicas e tecnocráticas na Europa.
O problema é o seguinte: quando comparado com os Estados Unidos, o bloco europeu parece ter divergido de forma significativa desde 2008. Em 2008, o PIB da União Europeia como um todo era ligeiramente maior que o PIB dos EUA. A U.E. produzia anualmente o equivalente a 17.63 triliões de dólares internacionais, uma moeda que controla para os diferentes níveis de poder de compra, e os EUA 16.86 triliões de dólares de internacionais. Quinze anos depois, e controlando para inflação, a situação inverteu-se. Os Estados Unidos têm hoje um PIB anual superior ao de toda a União Europeia. Note-se que a UE tem bastante mais população que os EUA, com 448 milhões de europeus versus 330 milhões de norte-americanos. Ou seja, per capita, os norte-americanos são agora substancialmente mais produtivos que os europeus. O PIB per capita norte-americano é hoje 64.703 dólares internacionais, mais de 41% superior ao PIB per capita europeu, que se fica pelos 45.713 dólares internacionais, mais uma vez controlando para a inflacção e para as diferenças de poder de compra. Este não é um artefacto dos dados. Utilizando outras moedas de referência, por exemplo, o dólar, controlando ou não para inflação, as tendências são semelhantes e estão lá. Houve uma divergência económica dos dois blocos ao longo dos últimos 15 anos.
As causas desta divergência precisam ainda de ser estudadas mais profundamente, e aguardo com expectativa o relatório que Draghi irá produzir. Por enquanto, têm sido apontadas a grande diferença de competitividade no mercado tecnológico, mas também da indústria e dos próprios mercados de trabalho. A Europa parece sobrevalorizar a estabilidade. Mas a estabilidade em excesso é inimiga da inovação. E, a longo prazo, a inovação é um dos principais motores do crescimento económico. Por exemplo, investigação recente indica que o sector cientifico, tecnológico e académico Europeu é bastante menos influente e competitivo que o norte-americano.
Alguns argumentam que a Europa não tem nada a temer. Ao contrário dos capitalistas Americanos, obcecados com a sedução do dinheiro, a Europa faz uma opção consciente de focar-se menos no crescimento económico e mais noutras coisas importantes da vida, como a igualdade ou a qualidade de vida. Sem dúvida que coisas como a valorização do lazer e da saúde colectiva, segurança no mercado de trabalho, bem como as desigualdades que toleramos na nossa sociedade, são importantíssimas. As sociedades podem fazer colectivamente escolhas diferentes sobre como dividir e utilizar os seus recursos. A sociedade norte-americana tem, evidentemente, inúmeros problemas sociais gravíssimos com os quais tem de lidar. E, há, inclusive, tentativas muito interessantes de comparar os níveis de “bem-estar” para além do dinheiro. Mas não nos iludamos. As escolhas europeias – quaisquer que estas sejam, mais ou menos redistributivas, mais ou menos “sociais” – precisam de riqueza para as pagar. O empobrecimento relativo Europeu face ao bloco norte-americano não só torna mais difícil sustentar o modo Europeu de viver no futuro, como é sinal de que há algo nas estruturas produtivas e económicas Europeias que se pode estar a tornar obsoleto no contexto global. Falta dinamismo e inovação, essenciais se queremos continuar o modelo Europeu ao longo do próximo século.
A joie de vivre não se paga sozinha. E se é certo que o dinheiro não traz felicidade, também é certo que a falta de dinheiro causa muita infelicidade. Ignorar este problema não o vai resolver. A negação psicanalítica nunca fui boa solução. Como se costuma dizer, reconhecer a existência de um problema é o primeiro passo para a sua resolução.
Por cá, as elites políticas e económicas portuguesas precisam da União Europeia para sobreviver. É, aliás, na Europa e na robustez da União que assentam todos os seus projectos e planos. Por isso, os problemas de crescimento da EU são especialmente preocupantes para as elites extractivas nacionais. Recentemente, António Costa demonstrou isso mesmo ao escrever uma carta a Bruxelas a pedir “ajuda” para resolver o problema da habitação em Portugal, como se a Europa já não subsidiasse em milhares de milhões de euros anuais a economia portuguesa. Como se os outros países da Europa não tivessem registado, múltiplas vezes, o seu desagrado com as políticas Portuguesas de atração desleal de reformados europeus, nómadas digitais e outros não residentes, que financiam em grande parte o mercado imobiliário português. E como se o próprio crescimento económico português dos últimos anos não se tivesse baseado no famoso “turismo”, que também alimenta o sector imobiliário. Como uma criança que quer tudo e não percebe o conceito de trade-offs, isto é, de escolhas mutuamente exclusivas e das suas consequências, António Costa lá foi estender mais uma vez a mão a Bruxelas. Não admira. Acredito que ele próprio não saiba “governar” de outra forma e acredite que esta é a forma de o fazer.
Os famigerados “fundos europeus” financiam quase tudo em Portugal. De estradas e hospitais a programas de apoio a pequenas empresas e universidades, passando por turismos rurais, restaurantes e a própria dívida pública. Em Portugal, já não se sabe viver nem governar de outra forma. Mais grave é que, também por esta razão (mas não apenas por esta razão), se dissiparam os conceitos de responsabilidade política e responsabilização política. Os políticos que elegemos colectivamente são responsáveis por pensar e executar programas e políticas públicas e não podem sacudir todas as responsabilidades para a União Europeia.
No entanto, a continuação do status quo em Portugal – económico, político, social – assenta na saúde da máquina europeia. As políticas públicas actualmente em vigor, bem como o próprio modo de fazer política assenta nela. A máquina produtiva europeia não pode gripar. Os países contribuintes líquidos do orçamento da União Europeia têm de poder e querer continuar a pagar para que os países que são recipientes líquidos continuem a receber. O que acontecerá se um dia isso não acontecer? Portugal e as elites políticas portuguesas não podem ignorar esta questão, como parecem estar a fazer.