«Cavaco Silva preocupa-se com o seu lugar na história, eu estou preocupado sobretudo com o futuro dos portugueses.» – Numa pressa que diz muito sobre aquilo que o preocupa, António Costa não conseguiu deixar passar mais que umas escassas horas para comentar o artigo que Cavaco Silva publicou aqui no Observador. (Marcelo também não ficou calado coisa que em si mesma jamais seria notícia, não fosse o actual PR conhecido pela sua verborreia, ter falado precisamente para anunciar que vai deixar de falar: «Marcelo diz que “há várias maneiras de ser ex-Presidente” e tenciona ter intervenção mínima».)

Mas voltemos a Cavaco Silva, António Costa e àquilo que o actual PM define como lugar na história. Sim, esse é mesmo o problema: a história, porque é aí, no confronto com a nossa história recente, que Cavaco Silva se torna um incómodo. Sejamos claros, polémica haveria e há sempre que Cavaco fala. Desta vez Cavaco parece até procurar a polémica quando confronta aquilo que na sua opinião os seus governos conseguiram com aquilo que António Costa não está a conseguir. Ou quando, como acontece na entrevista que deu a Maria João Avillez na CNN, se percebe como a sua habitual contenção dá lugar a uma crescente ênfase quando analisa a presente situação do PSD: está lá toda a argúcia do político que sempre foi apesar de sempre ter cultivado a imagem contrária.

(Para fazer uma boa entrevista não basta estar preparado e fazer perguntas. Com isso faz-se um interrogatório ou um questionário. Uma entrevista é outra coisa bem mais singular, como se percebe ao ver a entrevista que Maria João Avillez fez a Cavaco Silva).

Mas o que dá esta quase insólita ressonância às intervenções de Cavaco Silva é algo de muito mais lato e transversal que aquilo que cada um de nós pensa dele como governante ou que ele mesmo pensa de si. Parafraseando António Costa, o problema é a história. Mas não a história do que Cavaco Silva foi enquanto PM mas sim a história do que não estamos a ser e, mais grave ainda, do que não conseguiremos ser enquanto país.

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Da direita à esquerda, os portugueses deixaram de aspirar por um vida melhor para passar a desejar apenas que aquela que têm não piore. Onde antes exigiam aos seus governos, fossem eles PSD ou PS, que acabassem com a pobreza, os portugueses, sejam eles trabalhadores ou empresários, contentam-se agora com mais um subsídio ou mais um apoio. Um subsídio para cada empresa, uma isenção para cada português e uma taxa social para cada família tornaram-se as novas aspirações. Para sobreviver entre 4300 taxas e uma carga fiscal de 41,8% sobre os rendimentos do trabalho, a melhor táctica não é ganhar mais ou ter um trabalho melhor mas sim conseguir provar que se ganha suficientemente pouco para desse modo conseguir engrossar a crescente legião dos dependentes do Estado, que é como quem diz do Governo.

A reivindicação de melhores serviços públicos deu lugar a uma distopia bolivariana: temos o melhor SNS do mundo mas não só os seus trabalhadores e utentes o abandonam quando podem como somos confrontados com factos que noutros tempos e com outros governos – os de Cavaco Silva, por exemplo – teriam causado ondas de indignação: em 2020, a taxa de mortalidade materna atingiu os 20,1 óbitos por 100 mil nascimentos. Há 38 anos que não era registado um valor tão alto em Portugal (Sim, recuámos para valores semelhantes aos registados em 1982!)

Na educação, a inversão das expectativas – e tantas elas foram! – é ainda mais perversa: acabaram-se com as provas que sinalizavam como estavam a correr as aprendizagens, anuncia-se o sucesso geral da escola (na verdade tornaram quase impossíveis  as retenções) e acena-se com o grande desígnio de os futuros exames passarem a ser feitos em formato digital, o que objectivamente não tem qualquer relevância. Entretanto algumas avaliações dão conta de uma situação alarmante nas aprendizagens mas ficaram para trás os tempos em que dados similares teriam gerado uma tempestade política.

O que incomoda nas palavras de Cavaco Silva não é o que ele diz sobre o PSD (assunto que creio interessa a cada vez menos gente) nem o que diz sobre António Costa ou o PS. O que incomoda é que de cada vez que o antigo primeiro-ministro fala nos lembra que nós, os portugueses, tenhamos sido cavaquistas ou anti-cavaquistas, de direita ou de esquerda, não fomos sempre assim. O que mudou então em nós? As expectativas que depositávamos  no país. Durante anos discutíamos a nossa subida nos indicadores da UE. Depois emudecemos quando vimos os países do antigo bloco leste começarem a ultrapassar-nos. Agora esperamos que pelo menos a Bulgária não nos passe à frente.

É este lugar que nos atormenta e não o de Cavaco Silva na história ou na sua vida pessoal, matérias que felizmente para ele parece ter muito bem resolvidas.