Chanceler durante dezasseis anos, num país em que as mulheres ainda têm dificuldade em aceder a cargos de topo, Angela Merkel deixa a liderança da Alemanha com uma história que nos faz acreditar que salvou o euro, enfrentou a crise dos imigrantes com coragem política e deu um passo nesta pandemia para que a Europa possa construir um orçamento comum. Foi o seu europeísmo que manteve a Europa da União e do Euro unida e em progresso. Com pequenos passos conseguiu que todos caminhassem em conjunto.

Sendo a política a arte do possível, Merkel revelou uma capacidade política ímpar ao longo dos dezasseis anos de mandato. Há dois testes que foram especialmente reveladores da sua capacidade de unir o que parecia impossível unificar. Um é a crise do euro, outro o recente acordo do New Generation EU ou, como o conhecemos, a “bazooka” europeia para combater os efeitos da pandemia.

Entre 2011 e 2012, a Zona Euro enfrentou um sério teste de sobrevivência. Não se pode dizer que a primeira abordagem de Merkel à crise das dívidas soberanas tenha sido construtiva. Em 2011, com Portugal a assinar o Programa de Ajustamento Económico e Financeiro com a troika, já depois de a Grécia e a Irlanda terem sido resgatados, Angela Merkel disse que os países periféricos tinham muitos dias de férias e uma idade da reforma demasiado baixa. Uma declaração que em nada contribuiu para se resolver o problema da dívida que estava apenas no seu início e a divisão entre os países do Norte e do Sul. Mais tarde ainda foi preciso ajudar a Espanha e o Chipre, com o risco de colapso do euro a desaparecer apenas em 2012 graças a Mario Draghi e à sua declaração de que o BCE faria o que fosse necessário para proteger a moeda única.

Aquela declaração de Merkel, criticando os países do Sul, não se pode dizer que fosse contraditória, mas não alinhava com a primeira abordagem que teve à crise grega, ainda 2009, quando em Dezembro disse: “O que acontece num Estado-membro influencia todos os outros, especialmente quando temos uma moeda comum”. Uma declaração que ia contra o que estavam a dizer, por exemplo, os suecos, que defendiam que a Grécia deveria resolver o seu problema sozinha.

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Mais tarde, em Setembro de 2011, quem sabe se com maior consciência do efeito catastrófico que teria a queda financeira em dominó dos países do euro – a seguir poderia ser a Itália –, o registo da chanceler foi mudando. Se o euro colapsar, a Europa colapsa”.

Nunca saberemos se estes zigue-zagues reflectiram essencialmente uma estratégia de ir convencendo os alemães para a inevitabilidade de apoiarem os financiamentos que, numa primeira fase, e na ausência de instituições europeias para o efeito, foram realizados de forma bilateral. Mas o certo é que a Alemanha de Merkel foi dando o seu aval às sucessivas medidas, que foram sendo adoptadas para apoiar os países em dificuldades financeiras, e à aprovação às novas instituições – como o Mecanismo Europeu de Estabilidade – e às novas transferências de soberania – como a união bancária, mesmo que ainda apenas parcial por falta de acordo da Alemanha.

Mais recentemente, com a pandemia, o envelope de 750 mil milhões de euros do Next Generation EU, que será financiado com recurso a dívida e a novos impostos europeus, é concretizado também graças à aproximação que a Alemanha fez às posições da França e de mais oito países, entre os quais Portugal. Nessa carta dos nove pede-se que se recorra ao endividamento europeu – o tabu das euro-obrigações – para apoiar a economia e a sociedade europeias na pandemia. Foi a 18 de Maio de 2020, pouco mais de dois meses depois de a Organização Mundial de Saúde ter declarado que estávamos em pandemia, que a Alemanha e a França anunciam que vai haver apoio ao nível europeu e financiado com dívida. Um dia histórico que se consolidará na Cimeira de Julho, quando é criado o Next Generation EU que integra o Plano de Recuperação e Resiliência.

Tudo isto teria acontecido sem Merkel? Nunca saberemos. Como nunca saberemos se sem Merkel teria existido coragem para deixar entrar um milhões de imigrantes sírios em 2015. Aquilo que vemos ainda hoje com os imigrantes, que tentam melhorar as suas vidas na Europa, devia envergonhar-nos a todos. Só da Alemanha vimos uma actuação digna de uma grande país.

Sendo a construção europeia um processo de compromissos, estando hoje ainda bastante dividida entre Norte e Sul e constituindo a Alemanha um país chave nos progressos da integração, Angela Merkel ficará sempre na história como a chanceler que, nas crises, conseguiu reforçar a União Europeia e o euro incluindo todos. Olaf Scholz o novo chanceler tem uma boa herança. Merkel merece o nosso obrigada.