Em dezembro de 2019, J. K. Rowling manifestou no Twitter o seu apoio à investigadora Maya Forstater, cujo contrato de trabalho não foi renovado em resultado de posições públicas consideradas transfóbicas. Rowling já se encontrava sob vigilância digital por atos graves como “fazer like em certas publicações” e “follow certas pessoas”, mas aquele tweet colocou-a definitivamente debaixo de fogo, com a especial acusação de TERF. No passado mês de outubro, o comediante Dave Chappelle veio recuperar a polémica ao afirmar-se “Team TERF” em apoio a Rowling. Os problemas de Chappelle com a comunidade transexual são antigos e a declaração, em The Closer, de que “gender is a fact” gerou ondas de protesto no interior da própria Netflix. Poucos dias depois, foi a vez de Margaret Atwood ser acusada de terfismo por ter partilhado o artigo de Rosie DiManno sobre as alterações de vocabulário que têm em vista tornar a linguagem mais inclusiva para pessoas transexuais. Para Atwood e DiManno, essas alterações tendem a eliminar a presença da mulher no espaço público, o que consubstancia um retrocesso na caminhada feminista das últimas décadas.

Mas, afinal, o que é isso de TERF?

O acrónimo significa Transgender Exclusionary Radical Feminist – em português, algo como Feminista Radical Trans-Exclusivista – e a sua criação tem sido atribuída à blogger Viv Smythe. Smythe não assume a maternidade, mas reconhece ter usado o termo em 2008 para criticar eventos musicais feministas que excluem pessoas transexuais (“women-only space”). Embora neste primeiro uso a expressão surja como meramente qualificativa, ela tem vindo a assumir a forma de insulto e arma de arremesso nas redes sociais, condicionando a livre expressão com o estilo tóxico da indignação digital. O principal efeito resulta no contínuo fracionamento do Movimento de Justiça Social, que se caracteriza pela procura permanente do “lado certo” e, em consequência, pelo constante trucidamento dos antigos aliados que se tornam inimigos mortais.

De facto, o termo TERF e a sua utilização nestas lutas internas são um excelente exemplo desse contínuo sectarismo dos movimentos da interseccionalidade e, em especial, do modo como o feminismo se tem fragilizado ao ter sido cooptado pelo pós-modernismo e as teorias críticas da Nova Esquerda.  Para o compreendermos, devemos ter em consideração o princípio do construtivismo social radical (a ideia de que tudo é construção social) e a consequente introdução do binómio sexo/género (sex e gender, por influência do mundo anglo-americano), central para as atuais lutas culturais.

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Até meados do século XX, não havia grandes dúvidas quanto à utilização da palavra sexo para referirmos a clássica distinção entre homem e mulher. Homens e mulheres são biologicamente diferentes e essa diferença comum permite falar em sexo masculino e sexo feminino. O que as feministas da primeira geração afirmaram é que, apesar destas diferenças biológicas, não há justificação para um tratamento jurídico e social não igualitário – pelo que a sua luta era por direitos iguais.

A partir da década de 1970, as coisas alteram-se com a introdução, primeiro no domínio da psiquiatria e psicologia e depois das ciências sociais, da palavra género para significar o constrangimento social que impunha à mulher um determinado papel social. O género não resultaria da natureza, mas era socialmente construído e a sua introdução na reflexão feminista separou duas dimensões distintas da experiência feminina: ser mulher não compreendia apenas a dimensão biológica, que muitas vezes a onerava face ao homem, mas também a imposição social que decorria do entendimento do género social feminino. A segunda geração do feminismo nasce marcada por este duplo entendimento da vivência feminina, apresentada de modo exemplar nas palavras de Simone Beauvoir: “On ne naît pas femme, on devient femme.” [Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres.]

A luta feminista transfigura-se com a introdução deste binómio: a emancipação da mulher não seria concretizável apenas com direitos iguais – ela implicaria também uma libertação das imposições sociais que condicionam as mulheres desde o seu nascimento e que lhes determinam papéis sociais menores, sempre encobertos pela presença masculina que determina as condições de aparecimento da mulher no espaço público.

A maioria dos grandes nomes do feminismo do século XX vem desta geração e destes valores, como Gloria Steinem, Germaine Greer e a própria Margaret Atwood, que procuraram colocar a mulher no espaço público, dar voz ao feminino, tornar a mulher presente. E isto pressupõe reconhecer uma realidade específica que decorre de se ser mulher, que constitui uma experiência de vida específica e que deve ser especificamente valorizada. O valor da literatura de Atwood reside fundamentalmente aí: dá voz à vivência feminina, garantindo-lhe, nessa medida, o poder da presença.

Ora, tudo isto é alterado com a terceira vaga do feminismo, profundamente influenciada pelas teorias críticas e o caráter construtivista do masculino e do feminino, numa tendência de emancipação biológica. Nas suas versões mais radicais, esse princípio construtivista implica a destruição do elemento sexual pelo género, na medida em que tudo se torna uma construção social, até a dimensão biológica. A ideia prevalecente é, então, a de que a identidade pessoal não depende das características biológicas e a escolha individual passa a ter primazia sobre o elemento natural.

Sob a influência de nomes como o de Judith Butler, as duas últimas décadas têm sido marcadas pela ideia de que a identidade individual passa pelo reconhecimento pessoal da identidade de género, independentemente da dimensão biológica. Assim, podemos ter homens que se sentem mulheres e que querem tornar-se fisicamente femininos, e homens que querem ser tratados como mulheres mesmo sem qualquer modificação médica. Podemos ter mulheres que se consideram homens, mantendo ou não o corpo biológico com que nasceram. E podemos ter pessoas que recusam simplesmente a dicotomia masculino/feminino e que querem ser tratadas como género fluído ou uma qualquer outra expressão que represente essa recusa.

Em virtude do princípio de interseccionalidade que prevalece no movimento de justiça social (i.e., a ideia de que os grupos oprimidos devem unir-se na luta contra o sistema opressivo), as feministas viram-se como companheiras de luta do movimento LGB (Lésbicas, Gays e Bissexuais), depois transformado em LGBT (Transgénero) e que pode ser designado como LGBTQ (Queer), LGBTI (intersexo), LGBT+ ou uma série de outras siglas que estão constantemente a mudar. Mas a partilha do mesmo espaço de luta tem originado tensões permanentes e é isso que encontramos entre muitas feministas e as reivindicações transgénero.

O problema de feministas como Rowling e Atwood é que aquela conceção do género volta a colocar a mulher na sombra, esvaziando a sua presença e a sua vivência específica. Isso não significa ter algo contra os transexuais, mas significa reconhecer as implicações daquelas ideias na luta feminista. De modo mais radical, Germaine Greer e Camille Paglia têm defendido que essas implicações são profundamente lesivas para as mulheres e, por isso, têm adotado posições muito críticas face ao movimento trans. É por essa razão que são consideradas feministas radicais e têm sido alvo de ataques (virtuais e não virtuais) por supostos companheiros de luta.

Como sabemos, no mundo da interseccionalidade não há lugar para pensamento livre e livre discussão de ideias. Se não aceitarmos os dogmas estipulados a cada momento ou se pensarmos/dissermos/fizermos coisas erradas, tornamo-nos inimigos mortais (aqui podem encontrar uma lista assustadora de todos os atos que constituem matéria de terfismo). E os inimigos mortais devem ser silenciadas, esmurradas, decapitadas.