O tema da transexualidade tem vindo a ser discutido com regularidade nos países anglo-saxónicos na última década, muito impulsionado por figuras públicas que fizeram a transição, como Caitlyn Jenner e Chelsea Manning. A sua afirmação pública procurou sensibilizar para situações de discriminação e desconstruir preconceitos que impossibilitem uma adequada aceitação social dos transexuais. Mais recentemente, a temática ganhou contornos de polémica quando várias instituições sociais se viram confrontadas com a dificuldade de integrar as crescentes exigências de inclusão. A mais recente controvérsia aconteceu em torno de Will Thomas, um jovem norte-americano que decidiu alterar a sua identidade sexual para se assumir como Lia Thomas. A particularidade do caso é que Lia Thomas é nadadora e, tendo solicitado a possibilidade de participar em provas de natação femininas, tornou-se a primeira mulher transexual a conquistar uma medalha de ouro nas provas da National Collegiate Athletic Association, gerando vários protestos sobre a injustiça da situação.

1 Sexo e género

A primeira dificuldade com que nos confrontamos quando pretendemos compreender esta polémica é terminológica: o tema implica o domínio de múltiplos conceitos técnicos que devem ser tidos em conta. Por essa razão, importa começar por distinguir duas componentes no movimento trans: podemos falar em transgénero e em transexual, mas as duas coisas não são equivalentes, uma vez que as palavras sexo e género referem coisas distintas.

A palavra sexo remete para a dimensão biológica, nomeadamente para os órgãos genitais, e identifica o corpo com o qual nascemos: falamos, nesse sentido, em sexo masculino e sexo feminino, hermafroditismo ou intersexo.

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Já o vocábulo género remete para a dimensão cultural e social que é atribuída a cada sexo e que varia historicamente. Ao contrário do sexo, seria socialmente construído e, portanto, passível de ser alterado e politicamente reconstruído. A introdução deste termo deve muito ao movimento feminista tradicional, que chamava a atenção para o facto de se associar às mulheres um determinado papel social que limitava a sua atuação, pelo que a emancipação feminina passaria por libertar a mulher desse constrangimento. É por essa razão que os estudos feministas passaram a ser designados por estudos de género, na tentativa de analisar e desconstruir os papéis que eram impostos às mulheres, com recusa da normatividade biológica (a ideia de que as mulheres, pelo facto de serem biologicamente mulheres, deveriam ser ou comportar-se de uma determinada forma).

As implicações desta distinção para o domínio trans são claras: as pessoas podem ser transexuais, se optam por alterar o corpo biológico, ou transgéneras, se querem transitar de género sem fazer alterações físicas.

2 As teorias de género

Com a expressão teorias de género pretendemos remeter para aquelas teorias que, partindo do postulado filosófico de que não há uma realidade objetiva para a qual a nossa linguagem possa remeter, se centram no género enquanto construção social. A partir daqui, dão forma a um ativismo social que assenta na recusa de qualquer normatividade identitária. Para estas teorias, tudo aquilo que é apresentado como norma ou normal é uma imposição das estruturas de poder e a sua tarefa crítica é a desconstrução dessa normatividade, em especial a sexual.

Em última instância, o argumento tem sido conduzido no sentido de que o próprio corpo biológico – o sexo – seria uma construção social, pelo que não existiria nada para além do género. A consequência é a de que a identidade pessoal não tem constrangimentos pelo que pode ser livremente construída pelo indivíduo: ser do género masculino ou feminino, afirmar-se como não-binário (quando se recusa a dicotomia anterior) ou transitar livremente entre os dois géneros.

O problema das teorias de género é exatamente aquilo que as torna uma ideologia: apresentam-se como um conjunto de ideias que recusa qualquer aderência à natureza, numa tentativa de emancipação do corpo biológico e dos fenómenos naturais – pelo que parte da sua luta é contra a própria ciência. E, com a habitual ironia da história, as principais vítimas do axioma do género acabaram por ser aquelas que introduziram o termo na esfera pública: as mulheres. Na verdade, a emancipação pelo reconhecimento do género enquanto papel social transformou-se na emancipação de qualquer constrangimento biológico, deixando de fazer sentido falar em “mulher”. Assim, muitos têm sugerido a substituição desta palavra por expressões mais inclusivas, como “pessoa portadora de útero”, “pessoa que menstrua”, “pessoa que amamenta”, etc.. E as feministas que recusam estas expressões, em revolta contra o apagamento da mulher que elas promovem, são alvo de ataque, nomeadamente sob acusação de serem TERF, como já aqui tratamos.

Em bom rigor, contudo, são os transexuais a levantar mais dificuldades às teorias do género, na medida em que recuperam a importância do corpo: alguém que se submete ao doloroso, difícil e demorado processo de transição mostra que a identidade não é meramente uma questão de construção social, mas está fundamentalmente ligada ao corpo, à biologia, à natureza. Assim, são os transexuais quem mais desafia os pressupostos das teorias de género, como António Guerreiro chama a atenção.

3 Há uma agenda trans?

O artigo de António Guerreiro foi motivado por um texto muito corajoso da jornalista Bárbara Reis, que nos ajuda a refletir sobre se faz sentido falar em agenda trans. Muitos ativistas recusam que se possa usar este termo por denotar um sentido pejorativo aos esforços levados a cabo por uma comunidade que procura diminuir preconceitos e garantir a inclusão de pessoas em sofrimento – o que não deveria ser confundido com uma agenda política.

Mas o que é uma agenda política? Uma agenda política corresponde a uma plataforma de assuntos, estratégias e políticas defendidos por um movimento específico, que tem como objetivo pressionar e introduzir essa plataforma na sociedade. Ora, não há dúvidas de que encontramos no ativismo trans todos estes elementos: o movimento é a comunidade LGBT, e outros a ela associados; os assuntos e as políticas são públicos; e as estratégias são facilmente identificadas e passam por uma intervenção social de sensibilização, pressão e propaganda, com especial enfoque ao nível escolar (uma vista de olhos pela lista de recursos disponibilizada pela Direção-Geral da Educação deixa isso bem claro).

Na verdade, não há nada de novo ou errado na ideia de agenda política: as sociedades democráticas e pluralistas assentam precisamente em movimentos de reivindicação política, que tentam avançar a sua agenda. Podemos recordar a justa luta dos homossexuais que conseguiu terminar com discriminações legais injustificadas; ou o modo como os movimentos feministas conquistaram igualdade de direitos. O que leva, então, os ativistas trans a indignarem-se com a utilização da expressão “agenda trans” e a discussão acerca dessa agenda?

4 Uma agenda antidemocrática

Essa indignação parece resultar da transformação antidemocrática que ocorreu dentro destes grupos nas últimas duas décadas, sob influência das teorias críticas e do movimento ativista woke (usemos esta expressão por facilidade), e que pode ser simbolizada pela mudança da sigla LGBT para LGBTQIA+.

O que caracteriza esta transformação é a defesa e a imposição de um conjunto de ideias e de uma visão do mundo que estão para lá da possibilidade de discussão, como se consistissem num acesso privilegiado à verdade que não pode ser disputado. Assim, não faria sentido falar em “agenda trans” porque essas ideias e essa visão não seriam uma questão de política, mas constituiriam verdades que devem ser simplesmente admitidas. Ora, é precisamente o facto de as reivindicações trans serem colocadas fora da lógica democrática de discussão pluralista que torna tal agenda não só censurável, como perigosa.

Regressemos ao artigo de Bárbara Reis: ele é motivado pelo conhecimento do fenómeno que, em português, poderíamos traduzir por “disforia de género de início rápido”, que tem sido identificado nos países que foram mais céleres a adotar a agenda trans. Na verdade, o que se tem assistido nesses países são fenómenos perversos que resultam de terem sido avançadas políticas dessa agenda sem a devida discussão, reflexão e ponderação. O aumento excessivo e injustificado de transições e, simultaneamente, o registo contínuo de reversões têm conduzido alguns países a moderar ou reverter a adoção de muitas medidas.

O modo antidemocrático como estes assuntos têm sido colocados pelos novos ativismos impede a discussão do assunto – e é por isso que Bárbara Reis sente a necessidade prévia de se defender de possíveis ataques. Mas falar sobre estas questões e querer discutir a justiça e adequação de medidas políticas não é colocarmo-nos contra ninguém, nem deixar de reconhecer o sofrimento que algumas pessoas têm, ou tiveram, que lidar ao longo da sua vida. Pelo contrário: falar sobre o assunto é precisamente o modo que as sociedades ocidentais arranjaram para evitar a violência e respeitar o sofrimento do Outro.

5 O efeito do argumento redentor

Como avançamos, então, para a adoção apressada de uma agenda política que se coloca para lá da possibilidade de discussão democrática?

Este fenómeno merece uma análise mais profunda sobre a necessidade humana de justiça e o funcionamento das sociedades ocidentais. O facto de se ter esvaziado o sentido coletivo de justiça pode ter conduzido à necessidade individual de promover a justiça, o que torna o efeito redentor dos argumentos wokemuito eficaz: eles apresentam-se sempre como visando uma sociedade mais justa, mais inclusiva e com menos sofrimento. E, na verdade, quem é que está contra isso? Pode haver sempre quem recuse esses valores, mas a maioria das pessoas quer estar do lado da Justiça, quer estar do lado do Bem, quer sentir que faz a diferença. Em particular, os professores. Por isso, se lhes dizem que é para promover a Justiça e o Bem, eles adotarão, sem refletir, aquilo que lhes é proposto.

No entanto, aquilo que fazemos politicamente sem uma reflexão adequada dá sempre maus resultados e a agenda trans não é exceção. Há, pelo menos, três consequências que devemos ter em conta.

6 Uma política de terra queimada

Em primeiro lugar, uma agenda política que pretende escapar à discussão democrática e se apresenta sob o discurso da “necessidade de mudar mentalidades” deve deixar-nos imediatamente de sobreaviso. O que a história nos mostra é que todos os regimes políticos que impediram a discussão e pretenderam “mudar mentalidades” foram regimes totalitários. É a justiça dos regimes totalitários que queremos?

Em segundo lugar, devemos prestar atenção aos efeitos do axioma do género. Esses efeitos talvez se tornem mais claros se introduzirmos, paradoxalmente, mais um termo complexo: Queer, representado na sigla crescente de LGBTQIA+ pela letra Q. Queer é um termo abrangente para significar uma atitude geral de não conformidade com as regras sociais habituais – há quem defenda, por isso, que a sigla LGBTQIA+ deve ser substituída apenas pela designação Queer. Mas devemos ter cuidado com as suas implicações práticas. Na teoria, a queerização significa recusar todas as normas sociais relativas à identidade sexual: a dicotomia homem/mulher (normatividade binária), a ideia de que o normal é ser heterossexual (heteronormatividade), os papéis sociais que dão forma ao género, etc.. Qual é a consequência prática? Uma recusa generalizada das normas sociais significa pôr em causa todas as práticas e instituições que cumprem o papel de sentido, coesão, confiança e estabilidade na sociedade – pelo que fazer este tipo de intervenção em contexto escolar significa cancelar todas as referências sociais dos mais novos. Mas qual é a legitimidade democrática para o fazerem? Que o objetivo dos novos ativismos é desconstruir a sociedade ocidental não há dúvidas, mas é o que nós queremos?

Em terceiro lugar: regressemos a Lia Thomas e à sua transição que tornou possível a participação em competições femininas. A pressão da agenda trans levou a que regras institucionais se alterassem por forma a abarcar as novas identidades trans – mas não estão as novas regras a produzir enormes injustiças para outros grupos, como as mulheres? Na verdade, a tensão entre mulheres e gays com os movimentos trans são constantes, tendo já levado a petições para que a letra T fosse retirada da sigla LGBT, mas parece estar a agravar-se. Durante mais de cem anos, os movimentos feministas procuraram que as instituições sociais (nomeadamente, as desportivas) se alterassem para garantir lugar, voz e representação na esfera pública para um grupo que se sentia silenciado – mas a conclusão desse processo parece ser a destruição dessas mesmas regras sociais que garantiam o lugar da mulher. É realmente esta política de terra queimada que queremos?