As atenções estão hoje, compreensivelmente, centradas no desfecho da disputa eleitoral nos EUA – seguida no resto do mundo, e em especial na velha Europa, como uma espécie de novela que suscita fascínio, emoções e até paixões intensas entre quem não tem o direito de nelas votar. E é precisamente por essas paixões intensas frequentemente toldarem a racionalidade até de pessoas inteligentes e habitualmente ponderadas que vale a pena, neste dia, salientar o que não muda com as eleições nos EUA, independentemente do seu desfecho.

Em primeiro lugar, os EUA continuarão a mover o seu foco para a região Ásia-Pacífico e a Europa continuará a perder importância relativa no âmbito da política externa dos EUA. Este é um movimento que começou há cerca de duas décadas, motivado por vários factores estruturais (com destaque para a rivalidade com a China), e que prosseguirá independentemente de quem ocupe a Casa Branca e das maiorias que forem existindo tanto no Senado como na Câmara dos Representantes.

Daqui decorre também, em segundo lugar, que a Europa terá necessariamente de investir mais – muito mais – na sua Defesa nos próximos anos. O tom em que os EUA continuarão no futuro próximo a comunicar aos europeus de que precisam de contribuir (bastante) mais no contexto da NATO poderá ser mais doce ou mais agreste mas a mensagem e as suas consequências serão, no essencial, as mesmas. Os tempos em que a Europa beneficiava do guarda-chuva norte-americano de forma mais ou menos incondicional estão, definitivamente, a chegar ao fim.

Em terceiro lugar, a polarização política nos EUA vai continuar intensa. Não só porque a sociedade norte-americana está basicamente dividida a meio mas porque essas duas metades do eleitorado se olham com crescente desconfiança e vêem algumas das suas diferenças como questões existenciais. Isto acontece em boa parte porque os progressistas se tornaram incapazes de olhar para a classe trabalhadora branca e esta tem respondido assumindo um comportamento político cada vez mais identitário perante as ameaças que percepciona ao seu modo de vida. Como muito bem explica em artigo recente João Pereira Coutinho:

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“Sobre a imigração e a globalização, ambas são vistas como ameaças diretas aos seus modos de vida: os imigrantes representam concorrência nos salários; a globalização representa o deslocamento das suas fábricas, o desemprego, a desolação comunitária e a devastação social. E, sobre a religiosidade e o conservadorismo, eles funcionam como estruturas essenciais para evitar o naufrágio —que nunca anda suficientemente longe para se darem ao luxo de se esquecerem dele. O naufrágio do crime, da gravidez indesejada, das drogas ou da ruína.

Perante isso, que têm os progressistas a dizer? Não sejam deploráveis? Não sejam lixo? Mudem de cidade, de estado, quem sabe de país? Abandonem a Bíblia e experimentem fazer terapia duas vezes por semana?

O ressentimento da classe trabalhadora perante os insultos dos progressistas é o mais poderoso motor de Trump.”

Em quarto lugar, a polarização vai ser acompanhada de uma intensificação da guerra cultural nos EUA e no mundo. Sendo certo que o wokismo começa a dar alguns sinais de recuo, não é menos verdade que o fenómeno trumpista se afirmou, contra as expectativas iniciais de muitos (grupo em que me incluo), como um modelo influente na reconfiguração da direita. Não obstante as muitas diferenças entre eles, quando hoje olhamos para o veterano Viktor Orbán (não por acaso uma das principais referência internacionais de Trump, juntamente com Nigel Farage), para Giorgia Meloni ou, talvez de forma ainda mais saliente, para Javier Milei, será difícil não reconhecer que estamos perante um modelo de combate cultural à esquerda com semelhanças entre si e moldes muito diferentes do centro-direita tradicional. Neste (limitado) sentido, será razoável considerar, como faz Collin Pruett, que, independentemente do resultado, Trump já teve uma importante vitória:

“Ominously for neoliberals, a Harris victory tonight will not erase the influence of Trump’s personality from public life. A generation of Americans has come of age in the shadow of Trump’s America First revolution. For voters under 30, Trumpian rhetoric, theatrics, and grievances are the only politics they’ve meaningfully engaged with. Many men, in particular, have embraced Trump’s combative style as a response to an elite culture they feel ignores their economic and social interests. In crucial ways, Trump effectively canceled cancel culture: left-wing rhetorical policing failed to contain him, and his perseverance through a decade of media attacks has blazed a trail for future anti-establishment crusaders.”

Em quinto e último lugar – mas certamente não menos importante – as eleições nos EUA não inverterão a preocupante tendência no sentido de maior proteccionismo. Também aqui Trump fez escola e a convergência actual entre Republicanos e Democratas no sentido de políticas mais proteccionistas dificilmente será invertida no curto e médio prazo. Com inevitáveis – e potencialmente graves – consequências a nível global – tanto no plano económico como nas tensões geopolíticas que as restrições comerciais propiciam.

Por todas estas razões, importa ir além da excitação – compreensível mas exacerbada – com a novela das eleições nos EUA e perceber o que não mudará seja qual for o resultado. Em particular para os europeus, que parecem na sua generalidade ainda não terem tomado plena consciência dos tempos muito difíceis que se avizinham para a Europa, independentemente da maior ou menor simpatia que possam sentir por quem ocupa a Casa Branca.