Ser do centro é, na conjuntura actual, quase um pecado. Aos que assim se declaram imputam-se todas os pecados que a imaginação pode invocar; falta de rectidão, pusilanimidade, falta de coragem, hesitação moral e intelectual, comodismo, etc… E, no entanto, nada disto é verdadeiro.
É preciso distinguir entre o centro político como atitude individual e o centro político como posição partidária.
Como atitude individual o centrismo político é um exercício da razão. Vejamos; as sociedades actuais caracterizam-se por um crescente grau de complexidade, como qualquer sociólogo confirmará. As narrativas ideológicas decorrentes de ideias «holísticas» ou seja, com explicações globais para tudo, passam completamente ao lado das questões e mais, são desadequadas porque levam à negação das realidades e fogem ao enfrentar dos problemas. Na verdade, a complexidade e o perigo é que se instalaram e nada daquilo que parecia seguro o é hoje; o estado-de-direito cai aos bocados com a desvalorização dos direitos individuais em consequência das imprevisíveis necessidades de segurança, o estado social transformou-se de estado de bem-estar em estado de mal-estar em consequência da insuportável pressão fiscal sobre as classes médias, o parlamentarismo é apenas uma recordação em consequência do inevitável aumento da importância do governo como órgão legislador, a representação política do eleitor vê-se descaracterizada dada a natureza técnica e inacessível das questões com que se debate o legislador, a ponto de se falar num parlamentarismo sem povo, os partidos políticos passaram de associações privadas a verdadeiros órgãos do estado, a referência à nação desapareceu na voragem europeia, etc…
Ser simplesmente de esquerda ou de direita nesta conjuntura confusa e impenetrável é querer não ver as coisas. Estas são muito mais complexas do que no tempo dos nossos pais. Já vi os melhores argumentos a favor da restauração democrática vindos de sectores considerados à direita e a os maiores ataques à democracia política vindos de sectores esquerdistas. Já vi de tudo e ainda vou ver maiores dislates.
É precisamente nesta altura que faz sentido colocar a questão do centro na política. Nenhuma das terríveis aporias que se levantam hoje pode ser tratada e resolvida de modo simples. Só através de um novo «uso público da razão», na imortal expressão kantiana, será possível chegar a soluções defensáveis e razoáveis. Há-que aquilatar dos argumentos oriundos de todos os quadrantes e usar de prudência e cautela na decisão. O percurso é argumentativo e o objectivo é lograr a solução razoável (ratio habilis). Sem preconceitos, sem medo de desagradar a convicções entranhadas, sem consideração por interesses instalados e sem devoções ideológicas.
O leitor já percebeu que é aqui que entra o centro na política. O centro é uma metodologia de raciocínio político. Exige a avaliação de todos os argumentos disponíveis, escolhendo sempre o melhor para o adaptar à circunstância histórica em que se vive e a atenção às consequências das soluções. Para isso é preciso fazer uma espécie de «redução eidética» (no sentido husserliano do termo) ou seja, despojarmo-nos de todas as pré-compreensões das coisas e irmos directos à essência das questões. Estar no centro é um exercício complexo; significa eliminar todos os a prioris com que nos inundaram a cabeça evitando os engodos do simplismo e do oportunismo e recusando a pretensa superioridade acéfala das ideologias mais comuns. O centro é um auto-exercício da razão política. Requer as difíceis qualidades da imparcialidade, do sentido das proporções, da argúcia e do bom-senso.
Dirão que estas qualidades podem encontrar-se tanto nos homens da esquerda como nos de direita (os esquerdistas dirão, mal, que são deles exclusivas, ou não fossem eles saídos direitinhos da coxa de Júpiter). Certamente que sim; o centro não exige que reneguemos as nossas convicções ou seja, que deixemos de ser de direita ou de esquerda. Os modernos acreditaram sempre em Deus mas não foi isso que os impediu de laicizarem completamente a compreensão das coisas. A convicção é uma coisa mas a maneira de resolver as coisas é outra. O que o centro exige é uma atitude de cuidado face ao perigo das escorregadelas e essa não está ao alcance do primeiro líder político, sobretudos se vieram do nada cultural e da indigência intelectual como a maior parte dos que por cá vemos. São eles as primeiras vítimas do preconceito e, por seu intermédio, todos nós acabamos por ser as vítimas.
O centro assim entendido, repito, não é um lugar partidário; é uma metodologia. Pode existir na cabeça de qualquer militante partidário e é bom que lá esteja. O que sucede é que ser do centro paga-se quase sempre caro porque é pouco compatível com provas de fé partidária.
Coisa completamente diferente é o centro como lugar de um partido, de um partido do centro ou seja, de um partido organizado que queira colocar-se no meio do espectro político partidário. Se o partido for de massas, como são hoje (quase) todos, o problema complica-se porque a homogeneidade entre a direcção e as bases nunca está garantida. Daí inevitáveis conflitos. Vêem-se muitas bases de direita, p. ex., integradas em partidos políticos cuja direcção está ou pretende estar no centro. Se a conjuntura política se modifica, como sucedeu agora no nosso país, as rupturas são inevitáveis.
São estas as dificuldades de um partido que pretende ocupar um lugar no centro de uma estrutura pluripartidária e fazer disso critério da sua vida política. Tivemos vários exemplos disto na história política portuguesa a seguir ao 25 de Abril e vamos ter mais; quando o partido se quer colocar ao centro as bases nem sempre o seguem e isso vê-se nos posteriores resultados eleitorais. Nestas condições, não são as bases que se devem deslocar mas sim a direcção partidária o que nem sempre é compreendido por ela. O que motivas as bases são convicções ao passo que frequentemente o que motiva as direcções partidárias são estratégias de sobrevivência política. Quem lucra são os partidos da direita e da esquerda.
Só num partido de quadros, como o pc, é que estes problemas não se colocam porque a direcção não tem de se preocupar com qualquer incómodo resultante do funcionamento das regras democráticas internas. A identidade entre bases e direcção está garantida porque as bases estão controladas e não têm qualquer influência na linha partidária monopolizada pela direcção. Por outro lado, a ortodoxia ideológica impede fugas e desvios.
Moral da história: os partidos do centro vivem em permanente erosão. Mas é isso que lhes permite viver à vontade nas águas turvas da política de que são os principais beneficiários. A breve trecho desligam-se das bases e profissionalizam-se na política. Os velhos bolcheviques chamavam a isto oportunismo, e com razão.