Num país como o nosso falar em conservadorismo é perigoso. Tentar explicá-lo é mais difícil do que em qualquer outro. E isto porque a cabeça do português médio está cheia hoje como já estava antes do 25 de Abril de preconceitos que lhe dificultam a compreensão do que vai dizer-se.

O conservadorismo não é um sistema de pensamento articulado e global sem hesitações e dúvidas que tudo permita esclarecer por simples remissão para postulados tidos por certos e inquestionáveis. Nada disso. O conservadorismo não é bem uma ideologia que queira retirar da razão abstracta a reconstrução da vida humana, ao contrário das ideologias modernas. O conservadorismo é uma atitude de crítica, não de cepticismo, perante os resultados concretos dos sistemas de ideias políticas mais em voga; a candura optimista do liberalismo que conduziu à lei da selva, o marxismo que levou à criminalidade organizada e o socialismo democrático que conduziu ao terrorismo fiscal e à astenia da sociedade civil. Todos eles prometiam uma vida melhor e confiavam no progresso em nome de ideias infalíveis. Ficavam maravilhados com as avançadas democráticas e com as prodigiosas realizações da técnica e pensavam que a vida humana é um caminho auspicioso para uma espécie de paraíso terrestre no qual as contradições mais ásperas seriam resolvidas no regaço do bem-estar e da concórdia racional. Bastaria romper com a malvada ordem existente até então. O ponto mais alto desta vulgata é o marxismo com a substituição da lei da necessidade pela da liberdade num mundo colectivizado, igualitário e próspero. Mas também o liberalismo confia no bem-estar global resultante apenas das magníficas virtudes e talentos de cada um conducentes, mesmo que ele não dê por isso, ao benefício de todos. O pensamento socialista democrático, por sua vez, aposta num discurso pretensamente emancipatório que quer «libertar» a humanidade dos malefícios que as trevas do passado lhe causaram e que a burguesia hoje reproduz. Antes das luminárias esquerdistas só havia escuridão e a humanidade tem tudo a aprender com tão lustrosas cabeças nascidas para a luz. É preciso fazer tábua rasa do passado e confiar nos seus ensinamentos. Tudo isto não é senão teologia laicizada.

Ora, o conservadorismo desconfia das narrativas milenaristas e iluminadas. É por isso que é mais uma atitude do que um sistema. Existe desde sempre. O conservadorismo desconfia das ideologias no sentido da lógica férrea das ideias pressupostas, sem atender a mais nada. O objectivo das ideologias foi sempre apropriarem-se da linguagem e transformá-la num meio destinado a falsear a realidade e inviabilizar a sua compreensão; a gíria esquerdista vive disto. O resultado foi sempre o terror e o seu instrumento foram sempre os intelectuais de serviço apostados em o branquear. Tivemos e temos ainda disso às dezenas no nosso país. O conservadorismo é, neste sentido, desideológico, precisamente porque atento às realidades mais do que à lógica interna das ideias, aos homens mais do que aos sistemas, à praxis mais do que à theoria. Desconfia tanto dos relativismos nominalistas a que conduz o liberalismo radical ancorado apenas no indivíduo e suas potencialidades bem como do milenarismo socialista. Confia na prudência e no fazer bem feito em face das circunstâncias e não no poder das ideias abstractas e, ao mesmo tempo, é realista porque precisamente conserva da realidade aquilo que ela tem de incontornável e funciona com ela. Não quer revolucionar fazendo tábua rasa do passado; quer aperfeiçoar. Nunca passaria pela cabeça de um conservador distorcer pela violência a realidade para que ela caiba dentro de esquemas ideológicos.

Não está em causa obviamente negar as conquistas democráticas e as vantagens da técnica. O conservador não é reaccionário. O seu método é a dúvida e o seu objectivo é a reforma. A dúvida, porque o progresso resolve muitos problemas mas levanta outros como bem sabemos depois de décadas de industrialização sem limites que conspurcaram o planeta e achincalharam a nossa qualidade de vida, irremediavelmente afastada da natureza e porque foi em nome do progresso e da libertação que se cometeram os maiores crimes que a história revelou. A reforma, porque a complexidade e diversidade do mundo actual não permite revoluções a não ser para pior. Quase todas as revoluções acabaram mal; a francesa logo degenerou no terror e só bem mais de quarenta anos depois deu azo a regimes democráticos reformistas, a russa, a chinesa, a norte-coreana e a cambojana pariram os regimes mais criminosos de que a história dá notícia e das outras é melhor nem falar. As únicas revoluções que tiveram sucesso, como bem viu Hannah Arendt, foram a inglesa dos fins do século 17 e a norte-americana, precisamente porque a primeira foi moderada nos seus objectivos e a segunda não quis criar nada de novo mas apenas conservar o que de bom já existia.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A razão conservadora está permanentemente aberta à evolução mas é céptica perante as rupturas. Acredita nas e defende as sedimentações culturais e éticas fornecidas e provadas pela história como a divisão dos poderes estatais, o municipalismo, as liberdades fundamentais e o horror ao totalitarismo, a educação familiar (e não estatal), a exigência pedagógica, os exames periódicos no ensino primário e secundário, a separação entre o estado e os negócios, o estender de mãos ao sector privado, a autoridade das forças de segurança, a concertação e o diálogo como metodologia para chegar à deliberação e as vantagens sociais e culturais da civilidade e do bom trato, que permite aquilo a que os gregos chamavam paideia ou aperfeiçoamento. Está disponível para as reformas mas só para aquelas que não contrariem o que de bom aprendemos com o passado e que resistam ao tribunal da razão.

Obviamente que o conservadorismo partilha alguma coisa com o liberalismo económico e social. Mas é assim porque o melhor do liberalismo é precisamente o seu lado conservador. Não é suportável a crença irracional nas virtudes salvíficas da iniciativa privada. O liberalismo tem de ser refreado e admitido apenas a benefício de inventário nos sectores de serviço público, mas sem receios e preconceitos se for caso disso. O próprio A. Smith nunca o negou. Não beneficia de qualquer vantagem sem dar provas concludentes. Não existem certezas a priori. Os inimigos principais do conservadorismo são o marxismo, o liberalismo ideológico sem critério, e a reacção. Quando era jovem gozava com os marxistas, porque dizia invejar-lhes as magníficas «certezas» próprias de quem apenas raciocina por dedução. Com os reaccionários era o mesmo, mas irritava-me particularmente o discurso da «virtude» e da «nação» d`aquém e d`além mar. E com os liberais, muito poucos nessa época, invejava-lhes a candura antropológica.

O conservadorismo, não sendo exclusivo do ocidente europeu, é o expoente máximo da razão crítica. Uma razão que se autentica e legitima através da história e da experiência provada, decorrente da velha «natureza das coisas», em vez de deduzida de esquemas e pressupostos infalíveis. Sabe conviver com a imperfeição mas não com o milenarismo nem com qualquer discurso que queira elevar-se acima do indivíduo de carne e osso. A razão conservadora é pública no sentido de aprendida com o público ouvinte e dialogante e por ele transmitida. É mais prática e deliberativa do que teórica e demonstrativa. Não resulta das lições de quaisquer mestres pensadores, como se fossem profecias.

É preciso acordarmos dos sonos dogmáticos do esquerdismo milenarista e do reaccionarismo tão enraizados entre nós e não nos deixarmos levar pelo novo engodo do liberalismo virginal. O lema é: conservador porque racional e racional porque conservador.