Em Maio deste ano duas irmãs paquistanesas residentes em Espanha foram atraídas ao Paquistão com falsas noticias de doença da mãe e, uma vez nesse país, foram assassinadas por alguns dos seus familiares por recusarem prosseguir com casamentos forçados.

Há dias noticiou-se que, em Vila Real, uma adolescente teria sido alvo de tentativa de rapto, neste caso por a família da própria se recusar a cumprir um casamento prometido a outra família.

Em Maio de 2021 o Observador deu noticia da identificação pelos profissionais de saúde de pelo menos 101 casos em Portugal de mutilação genital feminina no ano anterior.

Desde 2015, que o Código Penal português autonomizou os crimes de mutilação genital feminina, de perseguição e de casamento forçado.

Nos termos do artigo 144-A, a mutilação genital feminina é punida com pena de prisão de 2 a 10 anos e pelo artigo 154-B, o casamento forçado com pena de prisão até 5 anos. Os actos preparatórios também são puníveis.

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Se práticas e actos deste teor forem conhecidos, seguramente serão objecto de acção penal, até porque estamos perante crimes públicos. Aqueles que não forem conhecidos, ou existe denúncia ou não haverá maneira de serem penalizados e ficarão impunes.

Estes crimes em particular, são praticados na maior parte dos casos conhecidos, repito, na maior parte, dentro de determinadas comunidades ou etnias. Isso é um facto ineludível. Já as ilações que desse facto se retiram ou não retiram são muitíssimo discutíveis.

Um das reacções é o discurso de generalização destes comportamentos criminais a toda uma comunidade ou etnia, quando o próprio número de casos identificados revela que apenas uma minoria dentro dessas mesmas comunidades ou etnias aceita ou apoia tais comportamentos, quanto mais praticá-los. Todos os elementos disponíveis pelas entidades independentes que analisam e estudam estes casos demonstram que a excisão feminina é uma prática profundamente minoritária nas comunidades africanas residentes entre nós e os casamentos forçados não são habituais nem aceites pelas jovens e pelos pais na comunidade cigana. Casam normalmente dentro da mesma etnia, é verdade, mas com quem escolhem.

Quanto às pessoas de crença islâmica que vivem na Europa não só casam também com pessoas de crença religiosa diferente ou até sem crença alguma e casos como o que citámos no início são claramente excepcionais. Por conseguinte essas generalizações não se afiguram aceitáveis. São simplesmente erradas.

Existe em contraponto uma outra reacção, melhor dito, uma “não reacção discreta” a estes casos, curiosamente por parte da opinião dita mais progressista e zelosa dos direitos das minorias. Quando os casos noticiados são praticados dentro das ditas minorias o melhor é não lhes conferir relevo, pois isso prejudica as comunidades que são alvo das generalizações populistas que já falámos.

Ora este tipo de atitude de avestruz revela uma confrangedora condescendência selectiva, que não passa afinal de outro tipo de discriminação e menorização destas comunidades, quando no fim de contas o objectivo era (presume-se) até o contrário.

Seja qual for o aproveitamento que se faz destas situações para os objectivos das agendas de cada corrente de opinião, o que acaba por ser o mais evidente de tudo, é uma tendência que atravessa todos os grupos, mesmo com opiniões diametralmente opostas: a ideia de que podemos usufruir de um Estado de Direito a la carte.

Melhor dito: no que respeita a direitos sociais, direitos políticos, liberdade de opinião, etc., cumpram-se todas as garantias legais e constitucionais. No que refere aos deveres ou ao cumprimento da lei (que se é cega não é por acaso) vamos cumpri-la na medida das nossas convicções pessoais, dando a cada grupo, etnia, comunidade, género, etc. o direito de só cumprir aquilo com que concorda. Ora desse modo é óbvio que todo o sistema social que se tem construído desde o Séc. XX no chamado Ocidente vai obviamente ruir, pois ele assenta essencialmente no cumprimento da lei que é produzida por um legislador democrática e livremente eleito. E se esse legislador não satisfizer a maioria que o elegeu, teremos novas eleições, para do mesmo modo livre elegermos outro.

Não é por acaso que desde 2015 existem leis que criminalizam autonomamente a mutilação genital feminina, a perseguição e o casamento forçado. É porque essa é a vontade da sociedade, a vontade da maioria dos cidadãos eleitores manifestada de múltiplas formas e a Assembleia da República, mais não fez que a sua função: legislar de acordo com a vontade dos eleitores. E uma vez lei, a obrigação de cumprir é geral, sem prejuízo de em caso de discordância, todos sermos livres de recorrer ao poder judicial, ao Tribunal Constitucional e ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Ainda existem na lei várias situações em que é legitimo invocar objeção de consciência. Mas mutilação genital feminina, perseguição ou casamento forçado estão mesmo fora da lei e não há objeção, convicção ou tradição que lhe valha. É crime, porque a sociedade assim quer que seja.

Num Estado de Direito, no cumprimento da lei não há escolhas a la carte, como na ementa de um restaurante. Se alguém conhece um sistema político melhor, faça o favor de apresentar.