1 Retomo hoje o tema da crónica de há quinze dias (“O abandono do Ocidente”) sobre a tragédia da retirada americana e ocidental do Afeganistão. E agradeço os inúmeros comentários (maioritariamente críticos) de que fui alvo. A liberdade de crítica é um dos alicerces do Ocidente — e é sobre o regresso do Ocidente que me proponho escrever hoje.
Acredito que “o regresso do Ocidente” será possível se os erros agora cometidos forem seriamente enfrentados e livremente debatidos. E se a confiança euro-atlantista nos valores do Ocidente for reafirmada contra os tribalismos rivais, de esquerda e de direita, que os atacam — ou/e que simplesmente os desconhecem. Um sólido movimento de ideias euro-atlantista e pró-Ocidental está a renascer na América, no Reino Unido e na Europa continental. Faríamos bem em prestar-lhe atenção.
2 Tem sido muito legitimamente discutido se a democracia liberal ocidental pode ser exportada para culturas não ocidentais. É um tema magno da Ciência Política que permanece em aberto e que certamente merece uma continuada conversação. Há vários (talvez não muitos) exemplos de culturas não ocidentais que adoptaram com sucesso a democracia liberal: o Japão, a Índia, a Coreia do Sul e Taiwan (aos quais poderíamos talvez acrescentar Cabo Verde e a África do Sul), para citar apenas alguns, estão no topo da lista do excepcionalismo democrático não ocidental. Mas há certamente uma muito mais longa lista de fracassos da democracia liberal em culturas não ocidentais.
3 Todavia, e ao contrário do que tem sido abundantemente referido, este não é o tema central que está em causa na bizarra retirada americana e ocidental do Afeganistão.
Em primeiro lugar, porque o propósito crucial da presença americana e ocidental no Afeganistão não era nem nunca foi primordialmente promover a democracia. Foi, muito claramente desde o início, derrotar e manter sob controlo uma facção terrorista do fundamentalismo islâmico — perante a qual, lamento profundamente ter de recordar, foi agora efectuada uma bizarra capitulação.
Em segundo lugar, porque a bizarra retirada americana não foi decidida com base no alegado fracasso da construção da democracia no Afeganistão. A retirada foi decidida pela bizarra negociação do presidente Trump com os Talibãs — na qual negociação ele aceitou a exigência talibã de excluir o Governo do Afeganistão! E foi depois bizarramente aplicada pelo presidente Biden. Em ambos os casos, o que foi citado foi o chamado “interesse nacional americano”.
4 Disse aqui há quinze dias, e repito sem hesitação, que este conceito de “interesse nacional americano” está a ser esvaziado por facções rivais, à esquerda e à direita, da dimensão moral que sempre distinguiu o “excepcionalismo americano” desde a Declaração de Independência de 1776.
Uma boa introdução (ainda que com 790 páginas) a esse “excepcionalismo americano” pode ser encontrada no livro What so Proudly We Hail: The American Soul in Story, Speech, and Song, editado pelos professores (e grandes amigos de Portugal) Amy Kass, Leon Kass e Diana Schaub em 2011, republicado em 2013 e de novo em 2019 (ISI Books). George F. Will, o distinto cronista do Washington Post (também ele grande amigo de Portugal), chamou-lhe simplesmente “magnífico… uma educação cívica em um volume”.
5 Este “excepcionalismo americano” foi aliás defendido pelo liberal-conservador Edmund Burke no Parlamento britânico — durante uma (talvez a primeira) ‘guerra anti-colonial’, em que ele defendeu corajosamente no Parlamento britânico que os colonos ingleses na América (em guerra armada contra a metrópole britânica) estavam apenas legitimamente a defender as ancestrais liberdades parlamentares inglesas da Magna Carta de 1215. [Honra seja feita a esse ancestral sistema parlamentar britânico, Burke pôde dizer tudo isso no Parlamento sem que ninguém se atrevesse a mandá-lo para a prisão ou para o exílio — o que certamente teria sido o caso em alguns exóticos sistemas políticos ibéricos].
Um século e meio depois, por volta de 1940, outro liberal-conservador britânico — aliás de mãe americana — citou Edmund Burke e mobilizou a “special relationship’ anglo-americana para enfrentar em conjunto a peste nazi-comunista na Europa continental. Chamava-se Winston Churchill.
6 É este mesmo Winston Churchill que está hoje sob ataque comum dos tribalismos de esquerda e de direita que alimentam o abandono do Ocidente. Andrew Roberts, biógrafo de Churchill e também grande amigo de Portugal (“o mais antigo aliado”, como gosta de recordar), acaba de publicar duas demolidoras críticas — na Spectator e no Telegraph, de Londres — ao caricato livro de Geoffrey Wheatcroft Churchill’s Shadow: An Astonishingly Life and Dangerous Legacy (Bodley Head, 2021).
Também de Londres, na mais recente edição da distinta The Economist, acaba de chegar uma demolidora crítica à “esquerda iliberal” e à sua confluência com a “direita iliberal” no ataque aos valores demo-liberais do Ocidente euro-atlantista.
“Nas suas diferentes maneiras”, diz The Economist em editorial que faz tema da capa, “ambos os extremos colocam o poder antes dos processos, os fins antes dos meios, e os interesses de grupo antes da liberdade do indivíduo”. Prossegue ainda o editorial: “A derradeira complacência seria para os liberais clássicos [por contraste com os modernos liberais progressistas iliberais] menosprezarem a ameaça [dos extremos iliberais]. Os liberais clássicos devem [must] redescobrir o seu espírito de combate”.
7 Indeed they must! É a isso que chamo “o regresso do Ocidente”. E está a acontecer, como pode ser observado nas influentes publicações que citei.
A elas devo acrescentar a muito assertiva publicação on-line The American Purpose (editada pelos também grandes amigos de Portugal Francis Fukuyama e Jeffrey Gedmin). Deve também ser acrescentada a próxima realização da Conferência anual da International Churchill Society em Londres, de 7 a 9 de Outubro, bem como da Conferência anual em Praga (de 10 a 12 de Outubro) do Forum 2000, fundada pelo saudoso Vaclav Havel (no âmbito deste Forum 2000, já agora, tenho o prazer e o privilégio de presidir ao Trans-Atlantic Working Group).
Last but certainly not least, devo ainda recordar que, de 18 a 20 de Outubro, no histórico Estoril Palace Hotel — sede dos aliados anglo-americanos durante a II Guerra Mundial e berço do James Bond de Ian Fleming — terá lugar a 29ª edição anual do Estoril Political Forum. Por coincidência, ou talvez não, o tema deste ano será “On the 80th Anniversary of the Atlantic Charter: Structuring a New Alliance of Democracies”.
8 Acreditem ou não, o Ocidente está de regresso.