“O prestígio das instituições é fundamental”, diz o prof. Marcelo. O homem com certeza fala da Noruega. Em Portugal, com a cumplicidade de Sua Excelência, já não resta nada de institucional, e muito menos de prestigiado. O que há é o que se tem assistido, como na morte assistida, na novela da TAP: um Estado entregue a arruaceiros indignos do respeito necessário para administrar uma empresa unipessoal de missangas. Podia notar-se que a coisa se agrava de semana para semana. Não é preciso: é claro que a coisa se agrava, dado que a permissividade da semana anterior contamina a seguinte. E assim sucessivamente. Quando se deixa o “governo” (o conteúdo não corresponde ao conceito) em rédea livre, o “governo” tende a exibir a sua natureza com crescente nitidez. Se não se parar de cavar o fundo do poço, o poço não terá fundo.
Em benefício do rigor, não devemos engolir as declarações à CPI de Frederico Pinheiro, ex-adjunto do prestigiadíssimo professor Galamba, sem as confrontar com o pujante contraponto do seu antigo chefe e da chefe de gabinete deste, ambos com prestações firmes, genuínas, coerentes e sobretudo esclarecedoras.
Não, agora a sério: o depoimento do dr. Pinheiro não se limitou a mostrar o enorme buraco a que descemos: sugere que, na previsível falta de consequências, em breve o buraco será maior. Por enquanto, estamos no ponto em que o SIS serve os desvarios privados de “governantes”, inclusive mediante recurso a telefonemas ameaçadores a cidadãos incómodos. O ponto em que “governantes” oferecem socos à distância a adjuntos. O ponto em que adjuntos são encurralados e atacados no ministério por causa de informações pelos vistos impossíveis de copiar e confinadas a um único computador. O ponto em que, a somar às entidades oficiais e em cumprimento de ordens, inúmeros serviçais remunerados ou voluntários saem da toca a chamar impostor e desequilibrado ao adjunto que até há dias, e durante anos, era exemplo de lealdade. Não tarda estaremos noutro ponto, mais grotesco, mais irreversível, mais inimaginável. E se todos os acontecimentos, todos os métodos, todas as mentiras e toda a impunidade tresandam a ditadura de terceiro mundo, isso não é Impulse, e sim uma constatação óbvia de quem não vive no Twitter a glorificar o Líder.
O Líder. O Líder responde, com maus modos, pelo nome de António Costa e é a figura central da transformação da nossa frágil democracia numa autocracia sólida. O engraçado é que não parece. A cada novo “escândalo” – ou pouca-vergonha, ou crime –, a responsabilidade, a haver (o que é raro), verte inteirinha sobre a insignificância que se puser a jeito. No episódio em apreço, despachados o ex-adjunto (que não colaborou) e a dra. Eugénia (que colaborou), a insignificância disponível é o professor Galamba, um rapaz que fazia recados ao eng. Sócrates e já então prometia pancada a qualquer criatura com que não se cruzasse fisicamente. A existir, o professor Galamba não passa de um boneco. Só que, aparentemente, o dr. Costa nunca possui sombra de relação com os bonecos que pendura no seu “governo”, cujas acções são invariavelmente alheias ao sujeito que invariavelmente lhes puxa os fios.
Para boa parte dos “media” e a totalidade dos devotos, tamanha capacidade de fugir à culpa pelas próprias acções eleva o dr. Costa a um estatuto superior de político. É ao contrário: rebaixa o nosso estatuto de cidadãos. A lendária “habilidade” do dr. Costa, de facto um caso de miséria, esgota-se na veneração dos devotos e a na protecção de boa parte dos “media”. E na misteriosa subjugação da “oposição”, que não fora o gatafunho gráfico levaria com dezassete aspas. E no misterioso apoio da sumidade que formalmente ocupa o cargo de presidente da República.
No momento em que escrevo, que é o momento em que os derradeiros e pequeninos vestígios da legitimidade terminam de desabar com estrondo, a “oposição” insiste em exigir vigorosamente a demissão do professor Galamba. É o mesmo que confiscar um canivete a um gangue armado com bazucas. O PSD, verdade seja dita, passou a incluir nas exigências a demissão da senhora das “secretas”, a “bem da dignidade”. Logo, segundo o dr. Montenegro, basta enxotar um aldrabão e a obscura chefe do SIRP para isto se tornar imediatamente digno. O dr. Montenegro é um optimista. Ou um brincalhão. Ou um cínico munido de uma sofisticadíssima estratégia para desgastar o dr. Costa lentamente e substituí-lo em década, década e meia.
Sobra o prof. Marcelo, e sobrar é o verbo adequado. Ontem, o prof. Marcelo convidou os jornalistas para uma conversa ligeira nos jardins de Belém. Entretanto, lembrou-se de que talvez fosse ridículo mostrar-se apenas para dizer que continua atento e cancelou a conversa. Duas horas depois, conversou com os jornalistas para confirmar que não haveria conversa e informá-los de que continua atento.
Atento a quê, se não for indiscrição perguntar? Para usar uma expressão em voga, o “governo” ultrapassou as linhas vermelhas há tanto tempo e de tal maneira que as linhas sumiram no horizonte, muito lá para trás. Do que precisa Sua Excelência para enxotar esta gente? De vídeos de ministros a profanar cadáveres? De uma alternativa de poder robusta? De sondagens a castigar a inacreditável subserviência de Sua Excelência? Não imagino qual das opções ocorrerá primeiro. Mas aposto que o regime fica para último.