A pandemia trouxe, para uma parte da população, a sensação de um mundo mais global, que enfrenta um problema de saúde comum, confinada em casa mais ou menos ao mesmo tempo e que vai tendo um dia-a-dia semelhante, recorrendo às mesmas plataformas para o trabalho e para o lazer.
Apesar do impacto imediato negativo no comércio mundial, que, de acordo com a previsão da Organização Mundial do Comércio, será de uma quebra nos bens entre 13% e 32% só em 2020, os otimistas da globalização argumentam que no médio e longo prazo a crescente digitalização de algumas funções deverá intensificar a interdependência entre países. Afinal, se esta crise mostrou ser possível para uma parte considerável da população trabalhar remotamente, sobretudo nos países avançados, seguramente será possível, a partir de casa, produzir, vender e consumir bens e serviços de qualquer parte do mundo, reduzindo custos para todos.
Mas se a tecnologia é favorável a esta visão cosmopolita de uma minoria, ela esbarra com o atual contragolpe à globalização, em particular na sua vertente de comércio internacional. Longe de acelerar a globalização, a crise de saúde está a alimentar a subida do protecionismo que já vem de trás, liderado pelos Estados Unidos.
Este campeão da globalização das últimas duas décadas já tinha iniciado, com a Presidência de Trump, uma nova fase de retração do comércio internacional, renegociando o acordo comercial NAFTA com os seus vizinhos, terminando as negociações do TTIP, ameaçando com novas tarifas os seus aliados Europeus e abrindo uma guerra comercial com a China, antes mesmo do início da pandemia.
Agora, a pandemia reforçou a conflitualidade Este-Oeste. O secretismo da China, seguido da ofensiva, entre o charme e a retaliação, para limitar os danos na sua reputação, tem causado desconforto, desconfiança e até irritação na Europa e nos Estados Unidos. Um importante sinal disso é a decisão da Comissária Vestager, responsável pela política da concorrência, de abandonar as restrições às ajudas de Estado às empresas europeias para evitar que, na atual adversidade, sejam alvo de interesse por parte de países terceiros, nomeadamente a China.
A crise sanitária relançou igualmente o argumento antigo de auto-suficiência, agora ligado também à defesa do ambiente. Mesmo na Europa, que nos últimos vinte anos concretizou um número recorde de acordos de comércio e de investimento, a escassez na produção de material de proteção individual e de equipamento médico reforçou, segundo o Presidente Macron, a necessidade de repensar o comércio com países que têm menos exigências ambientais e laborais. E se a França é um país tradicionalmente menos aberto à concorrência internacional, até a Holanda, que sempre defendeu uma economia muito aberta, se juntou esta semana à França, a exigir à União Europeia uma posição mais exigente do ponto de vista ambiental em futuros acordos comerciais.
Sendo as preocupações de defesa nacional e ambientais inteiramente atendíveis, é preciso compreender que limitar o comércio internacional pode representar um retrocesso no crescimento e no bem-estar dos cidadãos nacionais. Perante as tentativas, um pouco ao estilo mercantilista do século XVIII, de tratar o comércio internacional como um jogo de soma nula, em que só ganha quem exportar mais e importar menos, convêm recordar a intuição de David Ricardo. Ricardo procurou sistematizar a ideia de que o comércio internacional é benéfico para todos, mesmo para os países que importam, porque a maior especialização permite que cada país produza e exporte os bens e serviços nos quais é mais competitivo. Os limites às importações conduzem habitualmente a preços mais caros para os consumidores e oferecem muitas vezes uma vantagem injusta a produtores que retêm recursos humanos e de capital a produzir bens, para os quais não são muito eficientes.
Mas os entraves ao comércio internacional podem também ser contraproducentes para atingir os objetivos que se pretende defender. O comércio internacional foi um dos elementos fundamentais para diminuir pobreza nos últimos 30 anos em todo o mundo (entre 1985 e 2015 a percentagem de pessoas que vive com menos de 1,9 dólares em paridade de poder de compra caiu de mais de 40% para 10%). A melhor maneira de atingir objetivos de crescimento sustentável, contribuindo simultaneamente para aumentar a prosperidade e desenvolvimento de tecnologias mais amigas do ambiente, é acelerar a emergência de uma classe média global, que naturalmente terá mais preocupações com as condições ambientais e de trabalho. Retroceder neste caminho significa condenar uma parte significativa da população mundial a trabalhar sem condições nem regras e sem incentivos para o desenvolvimento de métodos menos poluentes. E isso terá consequências económicas, políticas e ambientais para todos.