O dia nublado e encoberto retira a pouca cor do aeroporto e das suas redondezas. O cinzento apodera-se não só da rua, como das paredes, do chão, das malas, das pessoas. Tudo é cinzento e tudo é chato. As filas em todos os cantos, o calor exaustivo que nos vai incomodando, o constante ruído a relembrar-nos que faltam horas para chegar a casa ou os preços de aeroporto, injustificáveis. A motivação é curta especialmente sabendo que no dia seguinte começa uma longa semana de trabalho. Entramos no esquema infinito e diabólico de uma fila para o avião, uma fila que parece não ter fim nem início e que sinceramente parece criada para nunca ser rápida. Por fim lá entramos no avião, pequeno, quente, cheio, emanando um conjunto infindável de perfumes e odores, preparado para três horas de um percurso cuja dimensão não compreendemos, por sermos humanos. Sentamo-nos, encasacados, enfiados num buraco do qual muito dificilmente conseguimos sair, desconfortáveis, cansados, exaustos. A custo, o avião levanta voo e parte rumo às nuvens tempestuosas que felizmente deixamos para trás rumo ao sol e à luz. O avião lá chega ao limite da troposfera e o fatídico símbolo do cinto de segurança desaparece, criando uma pequena sensação de liberdade e de tranquilidade. Nesta altura, tiramos um livro, um computador ou um tablet e colocamo-lo na pequena mesa à nossa frente, normalmente demasiado pequena para grandes aventuras e colocada quase sempre a uma distância particularmente imperfeita. Faltam duas/três horas e tudo parece ligeiramente melhor. É nesta fase, de aparente sossego e calma, com grande parte do avião a dormir, que surge o fator crítico da viagem: o senhor da frente, até agora mais irrequieto que um porquinho-da-índia, mas tolerável, decide carregar no seu botão e empurrar-se totalmente contra a cadeira, esmagando-nos no nosso lugar. Vai-se o livro, a garrafa de água e a aparente calma, fragilmente construída. Invade-nos um sentimento de revolta, de cólera, de injustiça. “Porquê?!”, perguntamos enquanto procuramos compreensão nos restantes passageiros, vigorosamente alheados dos problemas dos outros. O senhor está no seu direito, pensamos nós de dentes cerrados. Não repetimos a proeza para não criar ódios atrás, alcançando o perfeito buraco de desconforto e de tensão. É neste cenário burguês que podemos começar a desenhar o propósito deste texto: o que pensar deste senhor que nos esmaga e nos tira a nossa pequena propriedade?
Não. O objetivo não é falar sobre usurpação de propriedade ou algo do género. O tema é bem mais importante.
Prosseguindo. Todos nós já nos cruzámos com más experiências, situações que não queremos repetir e em alguns casos, até pessoas com quem preferimos não estar, pessoas que como o senhor do banco da frente, nos tiram do sério. É estranhamente banal esta vontade negativa que nos assombra à medida que crescemos. Mas nem sempre assim foi.
No momento em que somos esmagados, seja no avião, no metro, na empresa, no supermercado, em sentido figurativo ou real, por uma pessoa ou por grupos de pessoas, propositadamente ou sem querer, neste momento sobra-nos um raciocínio essencial e que nos é natural por ser intrínseco. Sobra-nos o pensamento racional. Sobra-nos pensar nas pessoas como pessoas, boas, com bons propósitos, com boas intenções, que procuram melhorar as suas vidas nem sempre pensando nas dos outros, mas sem que isso seja feito de uma forma agressiva, violenta ou diabólica. De certa forma parece ridícula ou utópica esta lógica: fazem-te mal, propositadamente ou sem querer, e tu procuras pensar bem de quem o fez. Parece ridículo e irreal, mas está aqui o caminho para uma sociedade feliz. E se não nos fizer sentido, não precisamos de pensar nos países nórdicos, no Japão ou no Canadá para obter uma amostragem do raciocínio. Podemos pensar em nós próprios. Não hoje nem ontem, mas há 20, 30, 40, 50, 60 ou 70 anos, quando éramos crianças.
É precisamente este o ponto: ser criança. Quando começamos a nossa vida, somos pureza, autenticidade, verdade. Escolhemos sem critério porque queremos sinceramente ter tudo. Queremos o gelado, queremos a rua, queremos brincar, queremos o pai, a mãe, os irmãos, os primos. Não sabemos escolher nem queremos. Queremos tudo porque sabemos que tudo é bom, vemos as coisas como são, verdadeiras, boas. Crescemos e criamos vontade em nós próprios, criamos sonhos, criamos objetivos mais ou menos megalómanos. Tudo com pureza. Desde o querer ser bombeiro ao querer ser enfermeiro, polícia ou cantor. Dizemo-lo sem medo e com felicidade. E todos nos apoiam e veem o brilho com o que o dizemos. Vemos outras crianças e outras pessoas e queremos estar com elas, conhecê-las, brincar. Ainda que inicialmente com vergonha, rapidamente nos damos de forma totalmente espontânea.
Com a idade vamos criando perceções negativas acerca de coisas que antes eram belas, passamos a ter opiniões fortes sobre coisas que antes pareciam simples. Começamos a dizer que não e a não gostar claramente de partes da vida. Sofremos desilusões, custam-nos as derrotas, sofrem-nos as vitórias e compreendemos que afinal, nem tudo é assim tão bom, tão fácil, tão transparente. Começamos a escolher com base nas más experiências do passado, tornamo-nos pessoas seletivas, que não querem tudo e que se tornam exigentes na escolha. E a isso muitas vezes chamamos de idade adulta. Nesta idade deixamos de ter paciência para os senhores da frente nos aviões. Passamos a ter raiva deste senhor, queremos exigir que faça o que está certo e queremos ter o nosso espaço protegido e salvaguardado, não admitindo a injustiça que recai sobre nós. E isto é assim no avião, mas também o é no trânsito quando alguém nos tenta passar à frente, no supermercado quando queremos despachar as compras ou na empresa quando diferentes colegas se comparam em segredo. É assim em tantas situações e tipicamente a resposta é a mesma: exigir justiça, exigir o que nos pertence e à partida, repudiar, odiar, quem nos tira o que é nosso.
Faz-nos falta o espírito infantil. Faz-nos falta olhar para cada pessoa e ver a criança que também nós fomos e somos, cheia de esperança, cheia de vontade em conhecer o mundo e as pessoas, cheia de boas intenções, cheia de sonhos, cheia de ilusões. Faz-nos falta olhar para o senhor do avião e pensar na sua bondade, na sua boa infantilidade que o leva a tomar decisões que por vezes não contemplam o outro, mas sem maldade. Ou mesmo que com maldade, faz-nos falta olhar para a pessoa e tentar compreendê-la, imaginar por onde passou, o que sofreu e simplesmente ser bom. Faz-nos falta olhar para os adultos que compõem o mundo e imaginar as suas caras em criança, imaginá-los pequenos e puros, tal como nos sentimos tantas vezes. Essencialmente faz-nos falta dizer que não ao rápido escrutínio negativo que fazemos de cada pessoa que se cruza no nosso dia-a-dia e tentar alcançar as profundas razões e motivações de cada uma, tão complexa e tão diferente.
As pessoas são boas, têm bons propósitos, têm boas intenções e querem boas vidas, para si e para os outros. Somos todos crianças, com os nossos sonhos, com a nossa vontade, com a nossa pureza. O caminho para um mundo bom, simples e profundo passa por este raciocínio.