Dir-nos-ia o bom-senso que a “defesa do SNS” seria a consolidação de um sistema nacional de saúde que, de forma eficaz e universal, prestasse bons cuidados de saúde à população — sendo indiferente a esta se a gestão dos hospitais é estatal ou privada. Infelizmente, o bom-senso não é o forte da política portuguesa.
Entre 2011-2015, “a defesa do SNS” foi um slogan de combate partidário à maioria PSD-CDS, que governou o país num contexto de assistência económica e financeira. Nesses anos, a destruição do SNS foi-nos assegurada pelos discursos da esquerda parlamentar, que mobilizou manifestações e protestos debaixo de um título comum: a “austeridade mata”, diziam-nos, como quem denunciava uma conspiração para o desmantelamento do sector público em benefício dos operadores privados. A partir de 2016, com uma geringonça a governar, a austeridade das cativações deixou de matar (milagre!). Aí, órfã de combate partidário, “a defesa do SNS” assumiu-se como slogan de combate ideológico: o alvo a abater estava no sector privado que prestava serviço público de saúde, através das PPP — que eram apenas quatro (Loures, Cascais, Braga, Vila Franca de Xira).
Em 2018, com o governo a trabalhar numa Nova Lei de Bases da Saúde, o BE apresentou o seu projecto de lei, definindo os termos do debate. Em plenário, o debate foi elucidativo. Moisés Ferreira, então Deputado do BE, apresentou os objectivos do seu partido: “Enquanto a saúde for um negócio, Sras. e Srs. Deputados, enquanto o que estiver no centro da política da saúde for o interesse de meia dúzia de grupos que parasitam o Orçamento público, os utentes ficarão sempre prejudicados. Faltarão médicos, enfermeiros, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, auxiliares de saúde. Faltará tecnologia. As listas de espera serão grandes, as camas insuficientes, os meios complementares de diagnóstico obsoletos. É por isso que o Bloco de Esquerda lança o repto: este é o momento para ter coragem; é tempo de instituir a saúde como um direito e de fechar a porta aos que querem fazer da saúde um negócio“.
O BE não ficou a falar sozinho. Pelo PEV, o então Deputado José Luís Ferreira alinhou no diagnóstico: “O que lhe pergunto, Sr. Deputado Moisés Ferreira, é se a proposta que hoje nos traz para discussão coloca, de forma segura, um travão nesta imoralidade que constituem as parcerias público-privadas, que são bons negócios para os privados, mas que são desastrosos para o Estado e que, a nosso ver, constituem uma das principais causas para a atual situação do Serviço Nacional de Saúde, com profundos e sérios efeitos no que diz respeito ao acesso dos portugueses aos cuidados de saúde“.
No PCP, a actual porta-voz do PCP, Paula Santos, assegurou que “podem contar com o PCP no sentido do reforço e da valorização do SNS, pondo fim às PPP e à progressiva transferência de serviços para o privado“. Mas, apesar de tudo, dispensando as ilusões instituídas, uma vez que a Deputada Carla Cruz avisara que “é uma evidência inquestionável que a resolução dos problemas do Serviço Nacional de Saúde não depende de qualquer alteração à Lei de Bases da Saúde“.
No PS, as negociações foram temperando a discussão, em busca de um consenso à esquerda: a exclusão do sector privado e das PPP não foi assumida em pleno no texto da lei, mas sobressaia das entrelinhas. De tal modo que, nas declarações oficiais do governo a propósito da nova Lei de Bases da Saúde, os destaques foram reiteradamente para a menor participação dos privados. Nas palavras da ministra Marta Temido, a nova Lei de Bases “fortalece e moderniza o SNS através da gestão pública dos serviços e estabelecimentos de saúde do SNS” — ou seja, para o governo, o fortalecimento do SNS passou a estar associado ao carácter público da gestão.
Os discursos são uma coisa, os factos são outra coisa totalmente distinta. As evidências e os indicadores de desempenho mostram como todo esse debate se construiu em torno de uma falácia. Os hospitais em PPP deram provas de gestão mais eficiente, de níveis de desempenho mais exigentes, de actualização tecnológica, de satisfação dos utentes e de poupança para o Estado — constatações do Tribunal de Contas, neste relatório de auditoria. Mas, como se sabe, isso pouco importou: entre as quatro PPP na Saúde, três já não existem e a última resistente está em vias de se extinguir por falta de privados interessados em contratualizar nas condições propostas pelo governo. Objectivo político alcançado.
Em dias repletos de relatos sobre a ruptura de vários serviços do SNS, vale a pena retomar este episódio sobre a nova Lei de Bases da Saúde. Não, não explica tudo o que está mal no SNS. Mas expõe duas razões para nada ter melhorado. Primeira: nos governos de António Costa, em nome da sobrevivência da geringonça, cedeu-se à ideologia, ignoraram-se as evidências de bom desempenho das PPP na Saúde e aplicaram-se todos os esforços para as extinguir. Segunda razão: na medida em que o discurso político fez passar a ideia ilusória de que o fortalecimento do SNS dependeria do afastamento dos privados, as prioridades políticas estiveram desalinhadas das necessidades do sistema nacional de Saúde. Fez-se o que não deveria ter sido feito, não se fez o que era necessário fazer. Agora, não há plano de contingência que disfarce o estado a que isto chegou: o SNS não melhorou, piorou — e é fácil de identificar os responsáveis.