Eu, Jesus de Nazaré, também chamado Cristo, filho de Maria, casada com José, da casa e família de David (Lc 1, 27), na iminência da minha morte, em voluntário sacrifício de obediência a meu Pai Deus, pela redenção da humanidade, determino ser minha última vontade dispor de mim mesmo e dos meus bens da forma que aqui determino.
Deixo, aos que foram traídos pelos seus familiares e amigos, o beijo que recebi de Judas Iscariotes (Mt 26, 47-56; Mc 14, 43-52; Lc 22, 47-53; Jo 18, 3-11), para que, do mesmo modo como eu, sabendo-o traidor, lhe lavei os pés, os saibam perdoar e amar.
Deixo aos juízes e advogados a minha inocência, para que a justiça triunfe sobre a iniquidade, nenhum inocente seja condenado e a todos, também os que foram justamente punidos, seja reconhecida a dignidade de quem é imagem e semelhança de Deus.
Deixo a troça de que fui alvo pela multidão (Mt 27, 39-44; Mc 15, 29-32; Lc 23, 35-37) a todos os que têm vergonha de ser meus discípulos e, por respeitos humanos, ocultam a sua condição de cristãos, para que compreendam que o escárnio dos ímpios é a homenagem que o vício presta à virtude.
Deixo a todos os que são injustiçados a mansidão com que acatei a iníqua sentença de Pôncio Pilatos que, sabendo-me inocente, me condenou à morte na Cruz.
Deixo o indulto de que beneficiou Barrabás, e que me era devido (Mt 27, 15-26; Mc 15, 6-15; Lc 23, 13-25; Jo 18, 39-40), a todos os que praticam a violência, para que se convertam à paz, que é condição para a felicidade terrena e eterna.
Deixo aos frívolos o silêncio com que respondi a Herodes, quando me pediu sinais que satisfizessem a sua vã curiosidade (Lc 23, 6-12), mas a que não acedi porque o seu desejo não era de uma sincera conversão, único caminho de salvação.
Deixo aos ricos a minha pobreza porque, sendo rico, me fiz pobre por amor dos pobres, para que todos os pobres fossem ricos pela minha pobreza (2Cor 8, 9).
Deixo aos doentes as minhas dores, para que se alegrem nos seus sofrimentos e, pela sua união à minha paixão e morte na Cruz, completem na sua carne o que falta aos meus padecimentos, pelo meu corpo místico, que é a Igreja (Cl 1, 24).
Deixo a minha santa face impressa nos corações dos que socorrem os aflitos, como a deixei gravada no véu da Verónica, que enxugou, no caminho do Calvário, o meu rosto de sangue, suor e lágrimas.
Deixo aos trabalhadores o santo lenho da minha Cruz (Mt 27, 32-44; Mc 15, 21-32; Lc 23, 33-43; Jo 19, 24), memorial do meu labor como artesão na oficina de José, para que o exercício da sua profissão, com perfeição e espírito de serviço, seja um meio de santificação pessoal em ordem a uma sociedade mais justa e mais solidária.
Deixo às vítimas dos abusos de menores por membros do clero da minha Igreja o ultraje das bofetadas e escarros que recebi dos sacerdotes do meu povo (Mt 26, 67; Mc 14, 65), para que sirva de reparação pelas ofensas que sofreram, comparáveis às dores que padeci na paixão, e para que não desesperem, nem se afastem da Igreja.
Deixo aos indigentes as minhas vestes, de que fui despojado pelos soldados, que as sortearam entre si (Jo 19, 23-24; Mt 33-35; Lc 23, 34), para que também os meus fiéis, cristãos militantes, se despojem do que lhes sobra, em benefício dos que nada têm.
Deixo aos meus sacerdotes a ignomínia de ser crucificado entre dois ladrões, para que, como disse aos filhos de Zebedeu, não queiram outra honra ou glória que não seja a de beber o meu cálice (Mt 20, 20-28; Mc 10, 35-45; Lc 22, 24-27; Jo 13, 1-17).
Deixo a minha última prece – “Eloí, Eloí, lemá sabachtáni” (Sl 22, 2; Mc 15, 34; Mt 27, 46) – a todos os religiosos, sobretudo aos que, na solidão dos mosteiros e no silêncio dos conventos, vivem no desprezo do mundo o consolo do abandono em Deus, pela sua voluntária e humilde oblação, em oração e expiação pela salvação do mundo.
Deixo aos agonizantes e aos moribundos o vinagre que, na iminência da minha morte, me foi oferecido como narcótico (Jo 19, 29; Mt 27, 48; Mc 15, 36; Lc 23, 36), para que ninguém, na hora da morte, experimente a solidão, careça dos cuidados médicos e familiares, ou esmoreça por falta de esperança na vida eterna.
Deixo à Igreja o meu coração, trespassado pela lança do soldado, de que jorra uma água viva, que salta para a vida eterna (Jo 19, 34; 4, 14) e é fonte inesgotável de perdão e graça para quantos, absolvidos dos seus pecados pelo sacramento da reconciliação e penitência, me recebem depois no santíssimo sacramento da Eucaristia.
Deixo o dom da fé a todos os homens de boa vontade, que me procuram com rectidão de intenção e se compadecem do sofrimento dos seus irmãos, como o centurião, cuja razão iluminada pela sobrenatural revelação da minha condição divina, valorosamente me confessou diante dos homens (Mt 27, 54; Mc 15, 39; Lc 23, 47).
Deixo aos desalentados a esperança, na promessa que fiz, do alto da Cruz, ao bom ladrão (Lc 23, 43) pois, por grandes que sejam os seus crimes, estão sempre a tempo de ganhar, pela infinita misericórdia de Deus, o perdão que lhes abre as portas do paraíso.
Deixo a minha caridade aos jovens que, como João, o meu discípulo amado, permanecem junto à Cruz, aos quais entrego também a minha Mãe (Jo 19, 25-27), para que nunca desanimem e o coração imaculado de Maria seja o seu refúgio e o caminho que os conduza até mim, na comunhão com o Pai e o Espírito Santo.
E deixo ao mundo inteiro a alegria, pela vitória da vida sobre a morte, na minha gloriosa ressurreição e ascensão aos Céus, na jubilosa certeza da minha próxima vinda!
P.S. O incêndio da catedral parisiense de Notre Dame é uma tragédia, não apenas para a Igreja francesa, mas para a cultura europeia e para toda a humanidade. Foi comovedor ver os católicos franceses a rezar junto à sua catedral em chamas: foram as suas orações e lágrimas que, junto ao trabalho dos bombeiros, salvaram a sé da capital francesa. Graças a Deus e a um heroico sacerdote, foi possível resgatar o Santíssimo Sacramento. Felizmente, não há vítimas humanas a lamentar e a relíquia da coroa de espinhos e a túnica de São Luís, que aí se veneram, foram salvas. A generosa resposta, das entidades públicas e privadas francesas e da comunidade internacional, bem como de muitas pessoas, permitirá que a Notre Dame seja totalmente reconstruída em breve. Que assim seja e que das cinzas da catedral de Paris renasça o catolicismo em França, a filha primogénita da Igreja.