São Paulo é categórico, ao afirmar que a ressurreição de Jesus é o fundamento da fé cristã: “se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé (…). Se somente nesta vida esperamos em Cristo, somos os mais miseráveis de todos os homens” (1Cor 15, 17.19). Este acontecimento, embora atestado por inúmeras testemunhas, permanece misterioso, porque os que melhor conheciam Jesus não foram capazes de O identificar, quando O viram logo após a sua ressurreição. Paradoxo da Páscoa: como podem ser garantes do fundamento da fé cristã aqueles que, conhecendo-o tão bem, não O reconheceram depois da sua ressurreição?!

Os Evangelhos referem três ressurreições atribuídas a Cristo: a de Lázaro (Jo 11-1-44), a da filha de Jairo (Mt 9, 18-26) e a do filho da viúva de Naim (Lc 7, 11-17). Nestes três casos não houve nenhuma dúvida quanto à identidade do ressuscitado, pois foi sempre óbvio que se tratava da mesma pessoa. Não assim com Jesus de Nazaré.

São Marcos refere as diferentes aparições de Cristo no dia da sua ressurreição: primeiro a Maria Madalena, depois aos discípulos de Emaús e, “finalmente, aos próprios onze, quando estavam à mesa” (Mc 16, 14). Na segunda aparição, Jesus de Nazaré “apareceu com um aspecto diferente”. Mas, não é pela aparência que se conhecem as pessoas?! Se o aspecto era diferente, como podiam saber que era a mesma pessoa?!

São Lucas diz que, quando as mulheres foram ao sepulcro, “apareceram-lhes dois homens em trajes resplandecentes. Como estivessem amedrontadas e voltassem o rosto para o chão, eles disseram-lhes: ‘Porque buscais o Vivente entre os mortos? Não está aqui; ressuscitou!’” (Lc 24, 5-6). São Mateus e São Marcos esclarecem que quem lhes apareceu foi um “anjo do Senhor”, cujo “aspecto era como de um relâmpago; e a sua túnica branca como a neve” (Mt 28, 2-3; Mc 16, 5-8).

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Em relação a esta aparição há, portanto, discordâncias quanto à natureza e número: apareceram dois homens, como disse Lucas; ou um anjo, como referiram Mateus e Marcos?! Se um anjo é tido por dois homens, a aparição de Cristo ressuscitado não pode ser também a de um anjo?! Neste caso, não provaria a ressurreição do Nazareno, até porque aquele que é mentiroso e pai da mentira (Jo 8, 44) pode disfarçar-se de anjo de luz (2Cor 11,14) e dar assim a conhecer, como real, o que poderia nunca ter acontecido.

São Lucas refere, com muito pormenor, a aparição de Jesus aos dois de Emaús. Como discípulos que eram, deviam conhecer bem o Mestre. No terceiro dia depois da morte de Cristo na cruz, decidiram regressar à sua terra. Foi então que se “aproximou deles o próprio Jesus, e se pôs com eles a caminho; os seus olhos, porém, estavam impedidos de O reconhecer” (Lc 24, 15-16). Esta sua incapacidade para reconhecerem o seu Mestre é muito suspeita, não apenas porque eram seus alunos, mas também porque foi dele que falaram demoradamente: “começando por Moisés e seguindo por todos os profetas, [Jesus] explicou-lhes, em todas as Escrituras, tudo o que lhe dizia respeito” (Lc 24, 27). Ou seja, estão com Ele, a falar dele, e não O reconhecem?! É caso para perguntar: seria mesmo Jesus de Nazaré?! Só ao fim do dia, quando fazem uma paragem, para tomar uma refeição, é que, ao partir Jesus o pão, “os seus olhos abriram-se e reconheceram-no; mas Ele desapareceu da sua presença” (Lc 24, 31).

É paradoxal este testemunho dos discípulos de Emaús: como acreditar em quem, sendo discípulo do Mestre, está com Ele, horas a fio, e não O reconhece?! Se se afirma a sua inicial cegueira, quanto à identidade do estranho transeunte, como aceitar que, depois, vejam a Jesus de Nazaré?! Se não era crível o seu primeiro testemunho, quando não reconheceram o Mestre, porque há-de sê-lo o segundo, quando identificam o seu companheiro de viagem?! Não seria mais razoável crer que era verdadeiro o seu primeiro testemunho, que era também o mais natural, e que o que viram, ao lusco-fusco, quando caiu a noite e estavam já cansados do caminho, foi uma alucinação?! Se assim tivesse sido, ficaria também explicado o súbito desaparecimento posterior de Cristo.

Quando Jesus apareceu, no dia da sua ressurreição, aos apóstolos, estes, “dominados pelo espanto e cheios de temor, julgavam ver um espírito” (Lc 24, 37). Ora, uma tal perturbação não aconteceu nas outras ressurreições, em que ninguém duvidou de que se tratava da mesma pessoa, em corpo e alma. Se Lázaro e os filhos de Jairo e da viúva de Naim, depois de ressuscitados, não foram confundidos com nenhum espírito, foi o corpo de Cristo ressuscitado que apareceu aos apóstolos?! Porque a dúvida era pertinente, o suposto ressuscitado disse aos espantados e atemorizados discípulos: “‘Vede as minhas mãos e pés: sou eu mesmo. Tocai-me e olhai que um espírito não tem carne, nem ossos, como verificais que eu tenho’. Dizendo isto, mostrou-lhes as mãos e os pés.” (Lc 24, 39-40). Como nem assim ficaram convencidos de que era Ele mesmo, “perguntou-lhes: ‘Tendes aí alguma coisa que se coma?’ Deram-lhe um bocado de peixe assado; e tomando-o, comeu diante deles” (Lc 24, 41-43).

Não consta que nenhum espírito coma, mas também não é natural que um verdadeiro corpo apareça e desapareça. Com efeito, misteriosas são as suas aparições e desaparições. Depois de os de Emaús O terem reconhecido, “ele desapareceu” (Lc 24, 31). Mais tarde, quando estes discípulos contavam aos apóstolos o que lhes tinha acontecido, “Jesus apresentou-se no meio deles” (Lc 24, 36). Não aparece naturalmente, mas surge, instantaneamente, num sítio onde antes não estava. É o que também diz São João: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, com medo das autoridades judaicas, veio Jesus, pôs-se no meio deles” (Jo 20, 19).

É o evangelista João quem refere que Maria Madalena, estando junto ao túmulo, “contemplou dois anjos vestidos de branco, sentados onde tinha estado o corpo de Jesus, um à cabeceira e outro aos pés. Perguntaram-lhe: ‘Mulher, porque choras?’ E ela respondeu: ‘Porque levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram.’ Dito isto, voltou-se para trás e viu Jesus, de pé, mas não se dava conta de que era ele. E Jesus disse-lhe: ‘Mulher, porque choras? A quem procuras?’ Ela, pensando que era o encarregado do horto, disse-lhe: ‘Senhor, se foste tu que o tiraste, diz-me onde o puseste, que eu vou buscá-lo.’ Disse-lhe Jesus: ‘Maria!’ Ela, aproximando-se, exclamou em hebraico: ‘Rabbuni!’ – que quer dizer: ‘Mestre!’” (Jo 20, 12-18).

Mais uma vez alguém, que conhecia muito bem Jesus e que o tratava com a distância e reverência devida pela criatura ao Criador e pela discípula ao mestre, não O reconhece, apesar de estar a falar com Ele e dele!! Mais uma razão para duvidar de que fosse mesmo Jesus, embora ela estivesse certa de que assim era e, por isso, de seguida, foi “e anunciou aos discípulos: ‘Vi o Senhor!’” (Jo 20, 18).

É sabido que Tomé estava ausente, quando Jesus apareceu aos demais apóstolos, no dia da sua ressurreição. Não tendo acreditado no unânime testemunho deles, disse: “Se eu não vir o sinal dos pregos nas suas mãos e não meter o meu dedo nesse sinal dos pregos e a minha mão no seu peito, não acredito” (Jo 20, 25). Não obstante a impertinência da sua reivindicação, Jesus apareceu uma semana depois e “disse a Tomé: ‘Olha as minhas mãos: chega cá o teu dedo! Estende a tua mão e põe-na no meu peito. E não sejas incrédulo, mas fiel’. Tomé respondeu-lhe: ‘Meu Senhor e meu Deus!’” (Jo 20, 27-28). Como é possível que Jesus pudesse mostrar as suas chagas a Tomé e as não tivessem visto os discípulos de Emaús?! Quer isto dizer que Cristo ressuscitado tem várias aparências, nem sempre coincidentes?!

É o que também se deduz de um outro episódio, quando, “ao romper do dia, Jesus apresentou-se na margem, mas os discípulos não sabiam que era Ele” (Jo 21, 4). Disse-lhes que deitassem as redes para o lado direito da barca e, graças à pesca milagrosa, reconheceram-no. Pela sua aparência e voz não O tinham identificado, apesar de ser a terceira vez que aparecia aos apóstolos, e a quarta a Pedro!

Não restam dúvidas de que Cristo ressuscitou, como todos os apóstolos e mártires testemunharam e confirmaram, não apenas com a sua palavra, mas também com a sua vida. Mas, por que razão os evangelistas não ocultaram esta manifesta dificuldade de os seus mais próximos amigos O reconhecerem, depois de ressuscitado?! Não seria mais fácil crer na ressurreição de Jesus se o seu reconhecimento, por aqueles que melhor O conheciam, tivesse sido imediato?!

Esta aparente contradição é o paradoxo da Páscoa, que tem fácil explicação: enquanto Lázaro e os filhos de Jairo e da viúva de Naim apenas regressaram à vida mortal que antes tinham, tendo todos eles voltado a morrer, Jesus de Nazaré ressuscitou para uma nova vida na glória. Os evangelistas atestam a realidade da sua ressurreição, bem como a certeza da sua identidade e realidade corpórea, sublinhando a sua misteriosa transcendência, que a razão humana não pode compreender. Por isso, embora a ressurreição de Cristo seja uma evidência, é também um mistério, a que só se pode aceder pela fé. Se a ressurreição fosse apenas voltar à vida anterior, mais do que graça seria, como as cíclicas reencarnações em que acreditam algumas religiões orientais, uma maldição e uma desgraça.

À imagem e semelhança de Cristo ressuscitado, todos os homens estão destinados à glória, que consiste na participação da plenitude do amor que Deus é, e a que se acede, segundo a esperança cristã, pela profissão da fé e a prática da caridade. Santa Páscoa!