Por estes dias ando a ler o primeiro volume da trilogia do embaixador Bernardo Futscher Pereira sobre a diplomacia de Salazar. No período em  questão, a guerra civil espanhola, é interessante perceber a importância que Salazar dava à opinião pública na condução da política externa. Nos anos 30, os ânimos estavam exaltados na Europa e uma guerra aqui mesmo ao lado podia ter implicações catastróficas para Portugal mas, mesmo assim, Salazar não deixava de ter cuidado em ter a maioria da população do seu lado. Para isso, controlava a opinião publicada e criava a sua própria narrativa. O problema nesta estratégia pouco democrática é que temos de manter a versão dos acontecimentos, ou melhor, os actos políticos têm de condizer com o que se diz. As instruções que Salazar dava a Armindo Monteiro, embaixador em Londres, ou a Teotónio Pereira, quando colocado em Espanha, iam nesse sentido. O público não podia ser defraudado nas suas expectativas.

O curioso nesta constatação é que António Costa não tem o mesmo cuidado, apesar de vivermos numa democracia. Hoje não há censura, mas o fio condutor da narrativa que Costa nos conta desenrola-se de acordo com a sua conveniência. Actualmente, não temos lápis azul para cortar textos e imagens. A técnica, mais subtil embora não menos eficaz, é desviar as atenções.

A resposta do governo perante os casos como o da exoneração do director de Obstetrícia e Ginecologia do Centro Hospitalar Lisboa ou a cada vez menor disparidade salarial entre jovens com curso universitário e os que se ficam pelo secundário, é criar novos casos que votem estes ao esquecimento. Como é que isso se faz? Através da afronta. Do choque. Vai daí, António Costa é fotografado ao lado de Viktor Orbán, o líder europeu amigo de Putin que o primeiro-ministro descobriu ser menos racista que os professores em protesto. Possivelmente, Costa não contava que se soubesse do seu encontro com Orbán, mas aproveitou o facto para, acentuando a afronta, desviar o debate político para algo que domina e controla, ao contrário do que sucede com a deterioração do ensino ou com a lei da rolha na saúde.

Porque a verdade é que António Costa não quer saber. Não se interessa se, em Budapeste, sentar-se ao lado de Orbán representa o oposto do que diz em Portugal. Para Costa, o que se diz e o que não se diz deixa de ser dito assim que ele entender. Tal como o que se faz, se desfaz à primeira oportunidade. Costa não se sente na obrigação de dar explicações porque não lhe apetece. O que é, já foi e o que foi pode voltar a ser, de acordo com o possível, que pode nem ser certo. Não lhe interessa se as expectativas das pessoas saíram goradas, não perde um minuto que seja com o despacho das Finanças que cortou os apoios às rendas, apesar de ter prometido o contrário aos inquilinos. É esta capacidade do primeiro-ministro para não querer saber da consistência da sua própria narrativa, associada ao consentimento implícito da comunicação social e passividade da maioria da população, que permite que António Costa seja, numa democracia, mais poderoso, porque mais indolente, que Salazar no período da implementação da ditadura.

Neste aspecto António Costa conta com o fechar de olhos de Marcelo Rebelo de Sousa, que lembra os silêncios comprometidos de Óscar Carmona. Marcelo não teve o mínimo pejo em inventar desculpas que desvalorizassem a presença do primeiro-ministro num estádio de futebol ao lado de Orbán. Possivelmente, António Costa precisa do apoio do seu camarada húngaro para um cargo europeu. Ora, Marcelo sonha com a ida do primeiro-ministro para Bruxelas pois, quando tal acontecer, pode dissolver o Parlamento sem assumir a responsabilidade política do acto. Dissolve sim, mas porque Costa sai. Não porque o Presidente o quis. A esta nuance soma-se o fim da maioria socialista no Parlamento que permite a Marcelo tornar-se, finalmente, no presidente interventivo que deseja ser. Até lá nada fará em nome do regular funcionamento das instituições. Enquanto o primeiro-ministro quiser, também o presidente está nas mãos do todo-poderoso António Costa.

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