À falta de melhor, alguns meios de comunicação social têm-se entretido em alimentar o caso da aluna de Direito da Universidade do Porto que, por não estar vestida de forma adequada, foi admoestada pelo respectivo professor. Apesar de se tratar de uma ocorrência banal, alguma imprensa procurou fazer desta história, por sinal muito provinciana, um escândalo nacional. Não faltou quem opinasse, com maldosas suposições, em geral tão insignificantes quanto idiotas, sobre o dito professor, a sua suposta misoginia e alegada ofensa ao sexo feminino.

Antes de mais, duas advertências prévias. A primeira, para declarar que sou amigo do Professor Doutor Paulo Pulido Adragão há mais de trinta anos. Ambos nos formámos em Direito, embora em diferentes universidades; e também eu, antes de ser padre, exerci a docência universitária. A segunda, para dizer que o Professor Pulido Adragão é alheio a esta minha iniciativa e não precisa que ninguém o defenda, porque é conhecida a integridade do seu carácter, a solidez da sua formação científica, a delicadeza do seu trato e a elevação dos ideais de serviço por que se rege: é, sem favor, um universitário de mérito, como tal conhecido e reconhecido pela a comunidade científica e universitária. Dois dados objectivos corroboram esta constatação de facto: conta com dois doutoramentos em Direito e foi recentemente condecorado pelo Estado português, pela sua meritória participação numas conversações internacionais.

Acresce a estas notas a circunstância, certamente relevante, de que ambos somos fiéis da prelatura do Opus Dei. Nenhum de nós faz disso publicidade em proveito próprio – é mais motivo de perseguição do que de favorecimento pessoal – nem segredo, porque não escondemos o que somos e assumimos, com a mesma naturalidade com que também nos identificamos como cristãos e portugueses. Por esta razão, ambos estamos de acordo em tudo o que ensina a Igreja católica, mas, em relação ao que é discutível, cada um tem as suas opiniões, coincidentes, divergentes e até contraditórias. Esta amplíssima liberdade de espírito nunca toldou a nossa amizade.

Talvez algum leitor pense que estas palavras confirmam a suspeita de que os membros da aludida prelatura se apoiam uns aos outros, em questões temporais. É uma infundada acusação que, por vezes, é aleivosamente insinuada. Os fiéis desta instituição católica apenas têm em comum a fé e só actuam corporativamente quando o bem da Igreja assim o exige. Que cada qual seja livre e responsável pelos seus actos não quer dizer que, não obstante a má-fé de alguns, estejam proibidos de cristãmente se ajudarem, como agora, por um elementar dever de justiça e de caridade.

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Feita esta explicação, regresso ao caso em apreço, tão próprio da silly season. Salvo melhor opinião, há aqui duas questões a considerar: os alunos estão obrigados a cumprir algumas exigências relativas à indumentária, quando se examinam? O docente está facultado para julgar a conveniência do trajo dos alunos?

A resposta afirmativa à primeira questão é óbvia. O que talvez já não seja tão consensual é saber o registo a que estão obrigados os alunos quando fazem um exame. Na Universidade Católica Portuguesa, onde o Professor Pulido Adragão se formou, havia o costume de os alunos de Direito usarem casaco e gravata nos exames orais. Noutras universidades não haverá, decerto, esta praxe, mas com certeza que há mínimos a observar por quem assiste a uma aula, ou faz um exame.

Há já muitos anos, também na Universidade do Porto, uma estudante de Medicina não foi autorizada a fazer um exame oral sem meias. Como as não tinha, nem dinheiro para as comprar, o docente disponibilizou-se para lhe dar a verba necessária para esse efeito. Depois de as ter adquirido e calçado, pôde finalmente examinar-se. Ninguém faria hoje essa exigência, mas também agora professores e alunos se devem apresentar de uma forma correcta.

Como se costuma dizer, noblesse oblige: o exercício de uma função revestida de autoridade, seja ela académica, judicial, policial ou sagrada, obriga ao uso da indumentária adequada. Um juiz não pode presidir a uma audiência, ou ditar uma sentença, em mangas de camisa; um polícia, em fato de banho, não está em condições de autuar ninguém; um sacerdote tem de se paramentar para celebrar a Eucaristia. Os direitos inerentes a um cargo são exigíveis ao respectivo titular: quem aceita uma função, está obrigado ao que lhe é próprio, também ao nível da indumentária.

Um exame é um acto académico formal. É razoável que se imponha, aos docentes e discentes, uma apresentação congruente com a solenidade da prova. Como nem todas as famílias, ou escolas, ensinam como se deve trajar, é desculpável a atitude da aluna em questão e compreensível a reacção do docente, que se viu obrigado a suprir uma carência institucional: são as universidades, e não os alunos, nem os professores, que devem indicar a indumentária a usar, ou a evitar, nas aulas e exames.

E o espirro?! Foi numa das primeiras aulas que dei, a alunos do primeiro ano de Direito. A páginas tantas, um dos caloiros espirrou de forma tão estrondosa que não podia deixar de ser, para além de uma evidente má-criação, uma provocação. Não hesitei e, de imediato, convidei o aluno a sair. Expliquei-lhe depois, bem como aos seus colegas, que estava ali para ensinar e que estaria sempre disponível para responder às suas perguntas, mas não admitia faltas de educação, nem de consideração. Escusado será dizer que foi remédio santo: nunca mais houve ‘espirros’ e mantive sempre uma excelente relação com os alunos, também com o que pedi que saísse da sala de aula.

O Professor Paulo Pulido Adragão teve a coragem de protagonizar uma acção exemplar. Se fosse outro docente, ou um aluno a protestar pela imprópria veste de um professor, decerto ninguém se teria escandalizado. A intervenção do docente pode ter parecido, por culpa da universidade, inadequada, mas teve o mérito de recordar que um mestre não é apenas alguém que divulga conhecimentos, mas alguém que educa, ou seja, ensina os estudantes para que sejam cidadãos livres e responsáveis. Os melhores professores não são os que mais sabem, mas os que positivamente influem na formação dos seus alunos, sobretudo pelo seu exemplo de vida, pelo seu saber e espírito crítico, pela sua liberdade e honestidade intelectual, pela audácia de ir contracorrente e, sobretudo, pela caridade. Com efeito, ensinar os ignorantes e corrigir os que erram não são ofensas, mas obras de misericórdia, como também, aliás, “vestir os nus” (Catecismo da Igreja Católica, nº 2447).