Há alguns dias estive numa reunião de amigos, todos ex-funcionários de uma fábrica têxtil de St.º Tirso de que fui médico na década de 90. Foi um almoço nostálgico, como são todos os encontros com aqueles com quem não partilhamos uma refeição há “demasiado” tempo. Os amigos, gente simples, sincera, gente de uma sabedoria acumulada, gente que dispensa etiqueta que não vá além do respeito pelo outro. E foi num encontro agradável onde em tertúlia recordámos anos e histórias passadas que recordámos os ausentes e olhámos para o presente à luz da saudade.

St.º Tirso foi durante o século XIX um importante polo da indústria têxtil nacional e, como no restante Vale do Ave, viu florescer inúmeras empresas do sector que no seu período auge davam trabalho a quase de 150.000 trabalhadores. St.º Tirso, finais dos anos 90, era uma cidade agradável, conhecida para além da sua actividade têxtil, pelo Colégio das Caldinhas, por vários restaurantes onde os pratos tradicionais traduziam a generosidade daquelas terras e por uma “catedral” da doçaria tradicional, a pastelaria Moura. E tão doce é a sua recordação que não consigo pronunciar o seu nome, ou pensar nesses dias sem sentir a felicidade que foi degustar, oferecer, partilhar ou apenas testemunhar o “olhar de felicidade” de quem da “Moura” provava os famosos “jesuítas”, mas também outros ícones da pastelaria tradicional como os “limonetes”, ou as “natas francesas”.

Naquele sábado, para um almoço de saudade, reuniram-se à mesa uma vintena de ex-funcionários de uma das mais emblemáticas têxteis da região. Uma das muitas vítimas da deriva quase sempre inevitável de “patrões” para “empresários”, mas também vítima de uma globalização que se iniciou na década de oitenta e acelerou o passo após a queda do muro de Berlim. O tsunami desencadeado pelo ruir desse muro, movido pelas placas de cimento que dele esboroaram e pela derrocada de uma distopia, demorou a espraiar-se por aquele vale, mas finais dos anos 90, inícios do milénio, já as consequências de desemprego e depressão económica eram visíveis em toda a região.

Recordo-me, meados dos anos 90, em conversa com um trabalhador dessa mesma empresa ele me ter “explicado” a globalização como um movimento que resultaria na exportação do nosso modo de vida e de retorno teríamos muita da miséria importada dessas paragens. Foi premonitório e dez anos volvidos estavam todos do lado de fora do muro que contornava a empresa. Aquelas máquinas seriam vendidas para pagar aos credores e dos mais de 1000 trabalhadores que as moviam em finais dos anos oitenta, contavam-se então, no fim, pouco mais de 500 resistentes. Alguns, quando viram o inevitável aproximar-se, conseguiram obter uma reforma em condições aceitáveis, mas muitos, a maioria, assistiu penosamente ao desaparecimento de um barco que até então tinham tripulado e agora afundava em pleno mar alto. Afundava e não vislumbraram por perto as boias de salvação ou os anúncios de requalificação e formação que governantes, partidos políticos e sindicatos propalaram como caminho da superação. Não era possível, não foi possível e só quem viveu por perto ou na pele aquela angústia e desalento é que pode saber o que significou após uma vida de trabalho de mais de trinta ou quarenta anos, ficar dependente de um subsídio, um magro apoio a quem sempre tinha vivido com pouco e agora via esse pouco fugir-lhe debaixo dos pés.

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Podiam, como na Inglaterra do século XIX, terem-se organizado num movimento como o dos Ludistas inspirado em Ned Ludd, uma figura que nos primórdios da revolução industrial viu nas máquinas um risco à subsistência de todos aqueles que dependiam de um trabalho manual. Um Ned Ludd que castigado pelo chicote por não se empenhar no trabalho, revoltou-se e com um martelo destruiu a máquina com que se propunham substituí-lo. Com esse gesto inspirou um movimento social de revolta contra o que hoje tomamos como uma evolução da humanidade, mas que à época não foi isenta de sacrifício e dor.

Quase dez anos volvidos sobre o encerramento da empresa lá estávamos reunidos e em grupo contámos histórias e recordámos o passado, falámos essencialmente do passado porque era ele que nos unia, mas também porque para a maioria dos presentes, já bem para lá dos 70, o futuro, diz a prudência, não deve ser perspetivado muito além do “dia de amanhã”.

No meio dos “verdes”, do “cabrito” ou do “bacalhau” que acompanham sempre estas tertúlias, dei por mim, o único médico do grupo, a ter o lugar do lado ocupado por convivas que sentando-se aí aproveitavam a intimidade da proximidade para me relatarem e pedir opinião sobre as suas desventuras e maleitas. E assim lá os fui ouvindo e aconselhando o melhor que podia e sabia, sempre com a certeza que aqueles amigos viam aquele momento de confessionário como purga de maleitas. Como ouvinte, qualificado por eles enquanto tal, naquela quase intimidade, procuravam nos meus comentários interpretar as minhas palavras e vislumbrar nelas um “antídoto” que lhes permitisse expiar os “pecados”.

Eram todos “velhos,” mas rapaziada da minha geração, tinham fruto da idade e dos desvarios próprios de quem amou a vida, acumulavam o que para eles eram doenças, mas que em boa verdade mais não eram que manifestações de velhice. Alguns pareciam ter decorado um livro de patologia e olhavam para a sua vida como uma caderneta onde há muito já tinham feito linha e agora encaminhavam-se para bingo.

Dos amigos, havia um em particular que me impressionou. Já tinha ultrapassado os oitenta anos, e desde que o tinha visto pela última vez, já acumulava quatro neoplasias distintas. Não sei se é da graciosidade do nosso SNS, se da incompetência dos tumores, que eventualmente já não são o que foram em tempos áureos, se por um fenómeno de seleção natural pelo qual ficam para velhos os mais resistentes, mas fosse pelo que fosse aquele meu amigo já há muito tinha “feito linha” e não me devo enganar muito se mais uma ou duas situações ocorressem de novo, acumulá-las-ia com orgulho e denodo. A idade tem destas coisas, faz de nós sobreviventes numa espécie de corrida onde só os de melhor cepa atingem o “eldorado do centenário”. E assim, aqueles amigos acercavam-se de mim como se fosse uma espécie de tabelião que pudesse certificar a destreza com que se iam desenvencilhando das maleitas acumuladas. Havia os que padeciam dos brônquios, dos intestinos, das vias urinárias, das artérias, de tudo um pouco, mas curiosamente, a idade tinha-lhes chegado pelas tubuladuras. Um pouco como os casas não lhes adiantava “caiar” as fachadas, ou reparar ciclicamente os telhados, tal como aos edifícios a idade não perdoa e era pelas canalizações que ela se faria sentir.

Enquanto lhes ouvia as queixas sempre com referência aos problemas das interfaces com o exterior, não pude deixar de recordar a ironia dos dísticos de recorrentemente vemos em viaturas e painéis publicitários a anunciar “Doutor dos Canos” ou “Cirurgião de Esgotos”. Reparei no escárnio, mas notei também que que para além da competição de maleitas acumuladas, havia por ali um padrão que até então me tinha estado oculto. Se não ocorressem imprevistos de monta, era pelos “canos” que o ser humano sentiria o envelhecimento, cada um à sua maneira, cada um acentuando mais a perda num sector de tubagem que noutro, porque nestas coisas do envelhecimento também impera alguma justiça e equidade.

E enquanto os ouvia, enquanto lhes avaliava a resiliência e a qualidade dos genes, ensaiava alguns conselhos, em regra banalidades que qualquer motor de busca poderia revelar, mas que, naquele ambiente, funcionavam como penitências que teriam de cumprir se quisessem a redenção do “eldorado”. E ali, num misto de médico, sacerdote e picheleiro, dada a escatologia de algumas descrições, dei por mim a sobrevoar alguns textos sobre o envelhecimento.

A velhice é a perda de faculdades. Quem para isso não se preparar, espere que vai ter uma surpresa! Claro que há personalidades que por hipertrofia de algumas características com a idade tendem a ficar mais equilibradas, mas para quem já se vir dentro de uma harmonia aceitável, a velhice é sempre uma perda de faculdades.

Apesar desta ser uma verdade nua e crua, muitos ao longo da história tentaram embelezá-la com predicados redundantes, por vezes gongóricos. Camões reconhecia nos “velhos” a decadência física, mas via-os com adjectivos como prudência, sabedoria e algum conservadorismo necessário ao equilíbrio de ímpetos mais afoitos.

Em Dom Quixote de La Mancha de Cervantes, os velhos personalizados pelo Cura e o Barbeiro são igualmente figuras gentis, ponderadas e conservadoras. Dom Quixote, o personagem, é um velho que procura os fulgores da juventude. Ele é-nos apresentado com um físico decrepito e depauperado mas possuidor de um espírito que vagueia entre a loucura de uma senilidade onde a lucidez se desconectou da realidade, e uma juventude, quiçá rebelde, mas seguramente em completo contraste com o seu declínio físico. Porém, e em boa verdade se diga que a valoração da idade e experiência não era igual à dos dias de hoje. À época, quem atingia os 40 anos já era velho e se com mais de 50 já tinha entrado numa idade avançada.

A velhice é um processo de perda, de perda de vitalidade, de amigos, de familiares, de relevância social, mas também de solidão, isolamento e marginalização. É um processo de obsolescência social. Porém, por entre a regra e as leis da vida, todos os dias somos iluminados por exemplos onde a velhice nos surge com nostalgia, resistência e superação.

Na literatura a velhice é frequentemente apresentada num retrato multifacetado, alternando entre o trágico e o redentor, o melancólico e o esperançoso, um símbolo de sabedoria, mas também de declínio, um convite à reflexão sobre o tempo, a mortalidade e a própria condição humana.

Como não podemos falar de velhice sem abordar como a sociedade em geral e os mais idosos em particular olham para a morte, vou para isso servir-me de duas magna opera da literatura mundial.

A primeira destas é A Morte de Ivan Iliitch de Lev Tolstoi. Nela, a primeira nota que ressalta ao leitor é a crueza com que os sentimentos do doente chocam com os de familiares e “amigos” que o rodeiam. É uma obra que desmascara a hipocrisia dos “amigos” que ao saberem da notícia da doença logo calculam as vantagens e oportunidades que o “triste desenlace” lhes pode trazer. A hipocrisia dos pêsames, traída por pensamentos como “antes ele que eu”, ou “que maçada”. São indícios do fingimento que o acompanhamento do féretro e o apoio à família encerra. Hipocrisia também sugerida pelo desapontamento do “amigo” Piotr Ivánovitch que ao ver-se retido no velório ficou impossibilitado de acompanhar os outros participantes no jogo de bridge que entretanto tinham combinado. Hipocrisia pura!

Hipocrisia da família, nomeadamente da sua mulher, Praskóvia Goloviná, que interrompe o choro e pranto para se inteirar das condições da pensão que o defunto deixara, ou na atenção que dedica aos pormenores e custos do enterro. Hipocrisia da família que em “agonia e sofrimento”, nunca se coibiu de fazer a pergunta de rotina (de rotina porque não a faz para ouvir a resposta, mas apenar porque é socialmente adequada): “ … então, meu querido, como se sente hoje?”. Só uma resposta vernácula é adequada! Hipocrisia da família, que com Ivan em estado pré-agónico, estavam mais preocupados com o noivado da filha e uma ida ao teatro para ver a grande Sarah Bernhardt.

Fingimento de amigos, família que o autor relevou magistralmente, e que muitos de nós, em situações análogas, pressentimos como uma névoa ténue e fugaz na sala, mas com o potencial de elefante na cerimónia.

É impossível ler o texto de Tolstoi sem recordar a legislação da Eutanásia, e vê-la como uma manifestação de hipocrisia com que alguns pretendem tratar os idosos e doentes no século XXI.

Hipocrisia ainda de uma medicina de então mais baseada na arte e na eloquência, mas também na forma teatral com que os protagonistas faziam os diagnósticos. Estes surgiam como se esses Doutores estivessem revestidos de um modus operandi, uma pele, uma veste, que estava sempre presente, qualquer que fosse o doente, qualquer que fosse a doença”. Assumiam uma postura tutelar e paternalista, sempre que solicitado um diagnóstico, um parecer, pedidos perante os quais divagavam com elegância num léxico, redondo e fechado, que só voltou a ter paralelo no dos gestores do século XXI. Nunca se comprometiam. “Havia sempre um se, um mas, um qualquer outro que poderia justificar uma evolução não esperada”. Já à época, os bons prognósticos, só podiam ser “previstos” no final dos acontecimentos.

No meio de tanta hipocrisia, Iliitch encontrou algum conforto no seu servo Guerássim, que durante a história parece ser o único, a par do filho mais novo, a reconhecer a desgraça que se abatia sobre ele, e a necessidade que este tinha de compaixão e calor humano. Tão desapoiado se encontrava o nosso doente que se confinava e entrincheirava num mundo seu, um mundo sem beleza e sem saúde. Um mundo onde qualquer manifestação que não fosse de comiseração era considerada insultuosa. Iliitch não suportava que os outros continuassem com a sua vida e este incómodo levou-o a ver-se como um empecilho na vida da família e dos amigos, e com isso acabou a desejar que o fim fosse rápido, não porque não tolerasse a dor física, mas mais porque lhe era insuportável a ideia de se ver como um trambolho cravado na felicidade dos que lhe deviam aconchego, “… os Doutores falavam em sofrimento físico terrível, o que era verdade. Mas mais terrível era o sofrimento moral, ainda mais insuportável para um doente”, …  “…Sorveu o ar, deteve-se a meio da inspiração, esticou-se e morreu”.

O segundo texto que aqui trago, As Intermitências da Morte, de José Saramago, é um romance publicado em 2005 que confronta a morte enquanto inevitabilidade que desejamos como espécie mas que com bondade só desejamos aos outros.

Nele Saramago propõe-nos uma alegoria fabulosa – num país indeterminado, as pessoas param de morrer. A morte é personificada numa entidade com características humanas e decide “tirar férias” interrompendo o ciclo natural de vida e morte. Essa premissa cria uma situação surreal, uma realidade onde a ausência da morte expõe questões filosóficas e sociais importantes, especialmente em relação ao envelhecimento e ao papel da morte na vida humana.

Na ausência de morte, os corpos continuam a deteriorar-se e idosos e outros particularmente doentes ficam presos num estado de degradação física contínua, sem possibilidade de descanso ou libertação. Aos dias de hoje esta alegoria reveste-se de uma importância renovada pois confronta todos aqueles que se propõem impedir a morte remetendo-nos para um estado de decaimento cada vez mais degradante, um apodrecimento sem dignidade. Os cosmistas soviéticos como Konstantin Tsiolkovsky (1857–1935); Alexander Bogdanov (1873–1928); Anatoli Lunatcharski (1875–1933) tentaram eles também a imortalidade como forma de glorificar o seu povo, os seus líderes e, não menos importante, o seu regime. E enquanto não tinham ciência que lhes possibilitasse ressuscitar todos os notáveis, propunham o embalsamento dos defuntos num misto de utopia, ciência e misticismo. Foi assim que surgiu o mausoléu a Lenine, foi assim que ele foi embalsamado.

A segunda reflexão que a obra de Saramago nos faz passa pela denuncia de instituições como hospitais e lares de idosos, que na sobrecarga revelam a inadequação dos sistemas sociais e de saúde para lidar com uma população onde a esperança média de vida e o número de idosos que ultrapassam os 90 anos está em constante aumento. À míngua de estruturas capazes de lidar com a nova realidade e do negócio instituído, que pelos custos impede que todos tenham direito a “um fim de vida tranquilo”, relegando os mais velhos e muitos doentes terminais à invisibilidade e à marginalização.

A morte é uma aspecto essencial da vida. Sem ela não há harmonia, equilíbrio, evolução biológica e de espécie, nem oportunidades para as gerações vindouras. Na ficção de Saramago este equilíbrio é perdido, o ciclo da vida rompe-se, a superpopulação torna-se um problema e a impossibilidade da morte cria novas formas de sofrimento com os mais velhos e doentes cada vez mais debilitados e a necessitarem de cuidados cada vez mais intensivos. Sem a morte a vida perde dignidade e torna-se um fardo insuportável.

A obra de Saramago obriga-nos a uma reflexão sobre a vida e a morte, olhando para esta última não através de conceitos metafóricos e requintados, mas confrontando-nos com as consequências dos nossos mais íntimos desejos.

No final do dia, no fim do almoço, olhamo-nos, abraçamo-nos, fizemos juras de cumplicidade e assumimos o compromisso de não deixar que o tempo tomasse conta dos nossos dias. Nesse abraço fraterno, e na lágrima que sem pudor deixámos que escorresse, lembrámos os que já partiram e deixaram à mesa e no nosso coração uma cadeira vazia.

“Em memória de Bernardino Certo, falecido em 2018, para que os sete palmos que agora o recobrem não o impeçam de subir às nove esferas celestes”.