Participar numa eleição é um acto que, pela sua própria natureza, é intrinsecamente moral e, portanto, tem pertinência pastoral. Quem vota, responsabiliza-se, de algum modo, pelo candidato, ou pelo partido, que sufraga. Quem não vota, é igualmente responsável por essa sua atitude e pelas suas consequências.

Se qualquer votação tem transcendência moral, a próxima eleição presidencial tem uma especial relevância ética. Com efeito, depois de o parlamento se ter recusado a ouvir, em referendo, os portugueses, elaborou uma proposta de lei da eutanásia, que o próximo chefe de Estado deverá, ou não, promulgar. Por isso, é necessário que os eleitores conheçam a posição relativa à eutanásia de todos os candidatos presidenciais.

Segundo o Público de 14-1-2021, à pergunta “Concorda com a despenalização da morte assistida?”, Ana Gomes, Marisa Matias, Tiago Mayan Gonçalves e Vitorino Silva responderam: “concordo”. João Ferreira foi evasivo: “Tendo a compreender e a respeitar as diferentes posições que se manifestam perante uma situação de sofrimento extremo, em resultado de uma doença fatal e incurável”. Marcelo Rebelo de Sousa também não quis, por enquanto, assumir nenhuma posição: “Vamos esperar pela lei e, conhecida a lei, definirei a minha posição definitiva sobre a matéria”. Só André Ventura teve uma resposta negativa clara: “Não. Eu, pessoalmente, não concordo”. Sem excluir, por exigência constitucional, a possibilidade da promulgação, assegura que, “como Presidente da República, exerceria influência para que houvesse um grande referendo nacional e um grande debate sobre a eutanásia em Portugal.”

Portanto, para um cristão coerente, as candidaturas de Ana Gomes, Marisa Matias, Tiago Mayan Gonçalves e Vitorino Silva estão, à partida, excluídas. O ‘nim’ de João Ferreira, que é comunista, tende a ser um sim à eutanásia; mas o ‘nim’ do actual Presidente, que é católico, pode vir a ser um ‘não’. Se assim for, para os católicos, só existem duas candidaturas presidenciais compatíveis com a doutrina social da Igreja: a do actual Presidente e a do deputado do Chega. Ambos dizem-se católicos, mas são-no verdadeiramente?

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Enquanto Marcelo Rebelo de Sousa se assume como sendo da ‘direita social’, André Ventura é tido como representante da direita autoritária e xenófoba. É sobre esta questão que incidem as críticas ao catolicismo deste candidato: as suas posições públicas, em relação a algumas etnias, bem como à imigração e aos refugiados, parecem contradizer os princípios cristãos e, mais em concreto, os ensinamentos do Papa. Com efeito, Francisco fez desta temática e da questão ecológica e climática as predominantes preocupações sociopolíticas do seu pontificado.

André Ventura é alvo das críticas dos crentes que não se revêem no seu programa político. É perfeitamente legítimo que católicos discordem das propostas políticas deste candidato presidencial, mas não lhes compete questionar a ortodoxia da sua fé, como fez o artigo “Para enviado de Deus, André Ventura não serve”, da Visão. Neste auto-de-fé, que chega a ser calunioso, declara-se ex cathedra que “um verdadeiro católico não pode rever-se no pregador Ventura (sic), em confronto permanente com o que foram os ensinamentos de Cristo e o que a Igreja Católica e o Papa Francisco hoje defendem”. A Visão, qual nova Inquisição, dixit.

Não compete a um qualquer fiel, nem muito menos a um jornalista, declarar em quem é que os católicos devem, ou não, votar: só a hierarquia pode orientar a acção social e política dos fiéis. Os sacerdotes, que se devem abster da actividade partidária, não podem substituir os fiéis na sua actuação cívica: os leigos devem intervir com plena liberdade e responsabilidade pessoal. Mesmo que, por hipótese, houvesse um único católico a concorrer, esse candidato não representaria a Igreja, não agiria em nome da hierarquia, nem em representação dos seus irmãos na fé. Instrumentalizar a religião para fins político-partidários é, sempre, uma detestável manifestação de clericalismo.

Todos os fiéis devem ser coerentes, sobretudo se se apresentam ao eleitorado como crentes. Os princípios políticos que os candidatos católicos devem respeitar são, única e exclusivamente, os que correspondem à doutrina social da Igreja e não às legítimas opiniões dos membros da hierarquia. O Santo Padre tem certamente as suas opções políticas, económicas e desportivas, que são pessoais e não podem ser impostas aos fiéis, nem os católicos têm por que as partilhar, sem que, por o não fazerem, se possa pôr em causa a sua fidelidade à Igreja, ou a sua obediência ao Papa, que só em matérias de fé é devida. O mesmo se diga dos bispos e padres que, como cidadãos, têm também as suas preferências políticas, mas que as não podem impor, nem propor, aos fiéis.

É legítimo que um cristão defenda a possibilidade da pena de prisão perpétua, como também é lícito que outro cristão a ela se oponha. O mesmo se diga em relação à imigração e ao acolhimento dos refugiados, salvaguardadas as necessárias exigências humanitárias. O Estado Cidade do Vaticano está murado, mas um católico pode ser contra a construção de muros nas fronteiras entre os Estados. Não consta que, no devoluto apartamento pontifício, ou na residência papal em Castelgandolfo, que o Papa também não usa, tenham sido recebidos imigrantes, embora, durante a segunda Guerra Mundial, Pio XII aí tenha acolhido muitos judeus perseguidos pelos regimes fascista e nazi. Um fiel pode entender, sem contradizer o Santo Padre, que seria desejável habilitar esses espaços para o acolhimento de refugiados, ou de pessoas sem abrigo, mas não que o Papa Francisco, por o não ter feito, é racista, xenófobo, ou contra os imigrantes e os sem abrigo.

Nestas questões discutíveis, nenhum fiel pode recorrer à fé para impor a sua opinião aos outros crentes. E, se os defensores e opositores dessas medidas forem bons cristãos, saberão respeitar, com caridade, os seus adversários, defendendo a sua liberdade. Se é assim nas questões opináveis, o mesmo não se pode dizer em relação aos temas doutrinais em que não há liberdade de opção: um católico não pode ser racista, nem a favor do aborto, nem partidário da eutanásia. Não deixa de ser curioso, senão mesmo farisaico, que os clérigos e leigos católicos que se insurgem contra a candidatura que, não sendo racista nem xenófoba, defende teses opináveis sobre política criminal e imigração, não censuram, pelo menos com a mesma veemência, o deputado do Bloco de Esquerda que, dizendo-se católico, é o principal promotor da eutanásia em Portugal!

Em defesa da liberdade das consciências, há que denunciar o inaceitável clericalismo dos que, em nome da fé, querem impor aos católicos o voto da sua preferência, ou anatemizar candidaturas legítimas a que têm aversão. À hierarquia compete, certamente, esclarecer os católicos sobre o seu direito e dever de participação política, nomeadamente através do voto, mas no mais escrupuloso respeito pela liberdade de escolha dos fiéis, desde que a sua opção seja compatível com os princípios fundamentais da doutrina social da Igreja.

Os fiéis não estão obrigados a votar num candidato presidencial que professe a sua religião, mas devem, em consciência, sufragar a candidatura que, no seu entender, melhor expressa as suas convicções e valores humanistas. A hierarquia deve proporcionar aos fiéis os critérios necessários para que a sua participação eleitoral seja livre e responsável, mas também esclarecida e coerente com a fé. Os clérigos, respeitando a liberdade de voto dos católicos, não devem manifestar preferências. Os leigos devem receber dos pastores a formação doutrinal que lhes permita fazer a melhor opção de voto, rejeitando qualquer interferência clerical, pois seria ofensiva da sua autonomia e dignidade. Só assim se realiza a “liberdade gloriosa dos filhos de Deus” (Rm 8, 21).