Onde vais América, no teu carro brilhante pela noite?
– Jack Kerouac, “On the Road”

Há as pessoas que insistem terem vivido vidas em tempos remotos, normalmente na pele de Cleópatra ou de um general prussiano (e raramente na pele de uma apanhadora de sanguessugas ou de um ferreiro com sífilis). E há as pessoas que sabem não ter vivido uma determinada vida no tempo que lhes foi presente. É o meu caso. Se guardo um arrependimento, é este: o de, aos 18 anos, não ter abandonado os estudos, a fim de partir rumo à América e tornar-me camionista de longo curso. Mas nem sei se me posso considerar arrependido por uma ideia que só me ocorreu depois dos trinta e cinco ou dos quarenta anos. E a pretexto de uma carreira que só contactei, indirectamente, há oito dias.

Aconteceu num povoado a leste de Houston e a caminho, ainda longo, de San Antonio, no Texas. Eu e os amigos que me acompanhavam parámos para jantar num restaurante recomendado pelo funcionário do posto de combustível local, cujos conselhos cumpriram os critérios que estabeleci: haver churrasco; não ser um “franchise”. Havia churrasco, habitualmente excelente por aqueles lados. Não era um “franchise”, e sim um estabelecimento familiar, ponto de reunião dos indígenas num serão de sexta-feira. Enquanto, junto ao balcão, debatíamos a ementa, dois indígenas debatiam a nossa proveniência. De súbito, um deles perguntou se éramos portugueses e eu espantei-me com a pontaria. Explicou sorridente que, sendo casado com uma colombiana, sabia espanhol o suficiente para perceber que não falávamos espanhol. E assim começou o que na América, sobretudo na América das pequenas cidades do interior, costuma começar com extraordinária facilidade: uma conversa.

Eram dois cinquentões, um de cabeça destapada, o outro com o Stetson (ou similar) no devido sítio. O segundo era texano de várias gerações, o primeiro filho de italianos que fizeram questão de não transmitir as origens ao filho: “Na América, somos americanos”. Eram residentes nas redondezas, a entrar no fim-de-semana com uma Budweiser, umas costelas de porco e, logo a seguir, uma partida de bilhar.

Para o que me importou e deslumbrou, eram motoristas de camião, os camiões desmesurados e brilhantes que nos filmes e na realidade buzinam a pedido. Alguns emocionam-se ao conhecer artistas de variedades, por regra aborrecidos como escalfetas. Eu, que nunca conhecera camionistas americanos, desprezei todas as distracções ao tema principal e, tão fascinado quanto um fã de Taylor Swift na presença da própria (que graças aos céus nunca ouvi), esmaguei-os com perguntas, confissões e sonhos patetas. Nem liguei quando acusaram os democratas de estragarem o país. Só me interessava o ofício deles, circunstância que os divertiu. Apurei inúmeras informações que de resto já possuía. Não se ganha mal (o assalariado ronda os oito a dez mil dólares mensais; o outro afirmou-se patrão, proprietário e assalariado, e não falou em rendimentos). É facílimo mudar de empresa, de emprego, de poiso. O glamour da profissão é um pouco exagerado (“Vemos demasiadas auto-estradas e perdemos demasiadas coisas que interessam”).

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A mim interessou-me tudo, e indiferente às ressalvas passou-me pelos olhos a existência que não tive, repleta de motéis, asfalto, lojas de conveniência e, nos intervalos, a escrita de prodigiosos romances decorridos em motéis, asfalto e lojas de conveniência. Findo o jantar, os camionistas desejaram-nos continuação de boa viagem, acrescentaram “God bless you!” e partiram numa “pick up” capaz de deprimir a Pequena Greta durante décadas.

A comitiva lusitana demorou-se e partiu tarde, e à saída hesitei entre o percurso aconselhado pelo GPS e uma rodovia estreita, sombria e sem destino discernível chamada Slaughterhouse (matadouro). Os meus parceiros de viagem instruíram-me a não me meter em confusões, pelo que me resignei à normalidade. Em cinco minutos, a normalidade interrompeu-se mediante a intervenção de um carro da polícia, que com sinais de luzes nos mandou encostar à berma. O minuto posterior, o período que levou a autoridade a acercar-se da nossa janela, serviu para os menos traquejados do grupo especularem, apenas meio a brincar, acerca do destino sombrio que nos aguardava. Os palpites iam da multa pesada à estadia numa penitenciária para criminosos impenitentes. Entretanto, a autoridade alcançou o vidro do passageiro. Tratava-se de uma agente com vinte e tal anos e a maior das delicadezas. Informou-nos que viajávamos com as luzes traseiras apagadas e que nos ajudaria a resolver o problema. Ajudou. Resolveu. Mandou-nos embora com um sorriso. E nós fomos a sorrir também.

Eu sei. Sei que os democratas estragam o país, e que muitos republicanos não o consertam. Sei que o país está dividido, não sei se mais do que alguma vez esteve. Sei que tarados e oportunistas estimulam as divisões em matéria de “raça”, credo, sexo e o que calhar de servir a estratégia de destruição. Sei da epidemia de drogas “modernas”. Sei dos sem-abrigo que vegetam pelos centros urbanos e “humanistas”. Sei do desavergonhado declínio do jornalismo tradicional e da duvidosa erupção das fontes “alternativas”. Sei que as livrarias escasseiam, e que as livrarias sem alusões “identitárias” são quase um mito. Sei do horror “arquitectónico” que polui e padroniza as cidades grandes. Sei, soube agora, uma dúzia de anos após as impressões iniciais, que em Nashville, Memphis e New Orleans, é menos provável ouvir country, blues e jazz do que o esterco que se amontoa nas tabelas de sucessos. Sei que o lixo, musical, material e mental, tende a acumular-se da sarjeta até à academia. Sei dos benefícios e dos horrores do progresso tecnológico. Sei da apatia, eufemismo para ignorância. Sei que a América que encontro a cada nova visita é um bocadinho menos da América que encontrei há vinte anos, como esta já seria bastante menos da América que não pude encontrar há quarenta.

De qualquer maneira, continuo a gostar da América e a experimentar lá as minúsculas epifanias que não experimento noutro lugar. A conversa com os camionistas. O negociante de tijolos do Mississípi, um negro enorme, que através de versículos bíblicos desmontou a lenda de que Robert Johnson vendera a alma ao diabo. As gargalhadas alimentadas a margaritas na noite de Galveston, ao pé da praia. Os amigos, os verdadeiros que vão daqui e os fugazes que se arranjam lá. A banda do Fritzel’s em Bourbon Street. A energia. A vastidão. As possibilidades, incluindo as irremediavelmente desperdiçadas. Pessimismo? Depende do modo de olhar o céu nocturno, pontilhado por estrelas: a imensa escuridão não impede a luz. E quem diz uma estrela diz o cromado de um camião, a iluminar a estrada e a noite sem fim. Ao volante, não fora a vida ser o que é, vou eu.