Havia, não sei se ainda há, uma deputada do PCP que desconhecia por completo a existência do Gulag. Interrogada a propósito, explicou que nunca estudara ou lera nada sobre o assunto. Sobre os presos políticos na China, confessou que não dominava “a fundo essa situação de modo a dar uma opinião séria e fundamentada”. Se tivessem continuado a questionar a senhora acerca de cada maravilha marxista, suspeito que a senhora teria continuado a professar ignorância acerca de todas, o que sugere que, para se ser comunista, ajuda não se fazer a mínima ideia do que é o comunismo.

Mas tamanho analfabetismo, deficiência cognitiva ou o que quiserem sugere também outras coisas. Lembrei-me da lendária entrevista à deputada Rita Rato (decerto um pseudónimo), ao ler, no Observador, a recente entrevista a Catarina Martins, líder do Bloco de Esquerda. Diz dona Catarina que no BE não se encontram sequer vestígios dos totalitarismos, das perseguições e do ódio normalmente associados à extrema-esquerda. Como não ousaria presumir que dona Catarina é mentirosa, deduzo que é portentosamente distraída: a julgar pelas atitudes das suas figuras ou através dos regimes que as suas figuras veneram e dos regimes que as suas figuras execram, o BE alimenta-se quase em exclusivo dos totalitarismos, das perseguições e do ódio. O BE, portanto, é de extrema-esquerda e a respectiva chefe não sabe.

Em Portugal, os profissionais da política ocupam tanto tempo a falar da importância da educação alheia que nunca arranjaram vagar para cuidar da própria. É provável que a dona Rita tenha reduzido a sua aprendizagem à leitura do “Avante!”, das obras completas de Alice Vieira e dos livros da Anita (“Anita Vai a uma Sessão de Esclarecimento” e “Anita Não Vai Procurar Emprego no Sector Privado” são clássicos óbvios). E a dona Catarina já afirmou que prefere cirurgiões especializados nos Monty Python do que formados em Medicina. Em lugar de organizarem “universidades” de Verão, as cúpulas partidárias fariam melhor em enfiar-se o ano inteiro numa. Ou pelo menos em explicações de português, no caso do dr. Costa. Ou num “workshop” de culinária, no caso da dra. Cristas.

O caso do dr. Rio – de que o longo mas desnecessário texto acima serve de introdução – é mais grave. Por norma, os políticos desfilam incultura para favorecer a sua agremiação. Aqui, é ao contrário. O dr. Rio passou pelo Colégio Alemão, pela Faculdade de Economia e pela vida em geral e, não obstante, conseguiu chegar aos 60 anos convencido de que o PSD é um partido de esquerda. Pior: todos os “notáveis” apoiantes do dr. Rio acham que o PSD é um partido de esquerda, que pertence à exacta esquerda representada pelo PS e que não deve obter nenhum voto que não se destinasse originalmente ao PS, cujo eleitorado aliás não desejam beliscar.

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No fundo, o dr. Rio e o seu séquito não imaginam qual a utilidade do partido que conquistaram e, depois de reflectidamente renunciarem a constituir-se alternativa ao socialismo, concluem que a utilidade é nula. Não exagero: divagando em nome desta extravagante seita, a célebre pensadora Ferreira Leite prefere que o PSD encolha para valores residuais do que mereça a simpatia dos dois ou três milhões de reaccionários que o têm sustentado desde 1975. Não me lembro, em toda a História Universal dos Projectos Obtusos, de uma rapaziada tomar conta de um partido com o propósito de o afundar de seguida.

Para cúmulo, e por ironia, o dr. Rio e companhia (moralmente) limitada vão acabar com o PSD em nome do homem que o inventou. É claro que a interpretação póstuma da vontade de Sá Carneiro dá emprego a centenas de médiuns há décadas. Porém, não querendo concorrer com estes, não me recordo de Sá Carneiro defender a submissão do partido aos apetites de qualquer laparoto que mandasse no PS, a troco de uns cargos avulsos e humilhantes. Os actuais donos do PSD, que ouvem vozes do Além, garantem que sim. Quando se despreza o bom senso em prol de burlas paranormais, o resultado está à vista. Ou estará em Outubro.

Notas de rodapé

  1. Um relatório da OCDE considera-nos um país corrupto, em competição renhida com o Iraque e a Nigéria. Num ápice, o governo entrou em acção. Para reduzir a corrupção? Não: para censurar o relatório. É por estas e por outras que o Iraque e a Nigéria não têm hipótese connosco. Se duvidam, esperem pelos relatórios futuros. E pelo governo presente.
  2. Nas ruínas do Waldorf-Astoria original, em cujo salão de baile passou seis meses como repórter de banquetes, congressos e palestras, o grande Robert Benchley proclamou: “Se estas paredes falassem, muito nos aborreceriam”. Se o cenário da recentemente cancelada (pela SIC) “Quadratura do Círculo” tivesse o dom da fala, o resultado seria um suicídio em massa. Ao longo dos anos, que pareceram séculos, de duração do programa, a irresponsabilidade do “zapping” levou-me a espreitar aquilo no máximo meia-dúzia de vezes. De cada vez, demorei-me apenas o tempo suficiente para perceber a cilada em que caíra e carregar desesperadamente no botão de avançar. Mesmo assim, foi tempo a mais. A parlapatice, o compadrio, o mofo e o vazio do exercício chegam para um indivíduo perder a réstia de esperança na humanidade. E sobram para a RTP ameaçar ressuscitá-lo.