Como cortar nos vencimentos da administração pública sem gerar resistências e protestos? Prometendo a valorização das carreiras com aumentos salariais (mas abaixo da inflação). Como promover uma crescente privatização do ensino, levando cada vez mais famílias a pagar mensalidades em colégios? Alegando uma acérrima “defesa da escola pública” enquanto se introduzem medidas que agravam as suas lacunas. Como incentivar os utentes a subscreverem seguros de saúde para aceder aos operadores privados? Anunciando o fortalecimento do SNS, assente no princípio da exclusão das PPP e dos operadores privados (tornando as lacunas do SNS ainda mais perceptíveis).
Nestas três áreas-chave do sector público, os governos de António Costa conseguiram em 7 anos alcançar o que nem um fervoroso neoliberal sonharia ser possível: cortaram-se salários no Estado e fragilizaram-se serviços estatais, instalou-se a percepção de colapso das redes públicas de saúde e educação, e tornou-se evidente o anseio da população em aceder a serviços prestados por privados. Não é coisa pouca.
Para 2023, a base remuneratória da função pública passou de 705 para 761,58 euros (ou seja, +8%). Do valor-base em diante, o aumento percentual é progressivamente menor e, a partir dos 2600 euros, os trabalhadores tiveram um aumento limitado a 2%. Ou seja, em Janeiro de 2023, a subida média dos salários da administração pública foi de 3,6%. Ora, para 2022, o valor anual médio da inflação foi de 7,8%. Tradução: apenas os funcionários públicos na base da pirâmide salarial é que tiveram uma actualização salarial nivelada pela inflação — os restantes (que são cerca de três quartos do total) sofreram um corte nos seus rendimentos.
Na Educação, nos dados mais recentes (referentes a 2021), observou-se um aumento da percentagem de alunos a frequentar colégios, em detrimento da rede pública estatal. No ensino secundário, essa oscilação é muito notória: 24,3% dos jovens do ensino secundário em Portugal estavam na rede privada (a pagar mensalidades) — uns enormes 3 pontos percentuais a mais relativamente ao ano de 2020 (21,5%). Os dados regionais tornam a tendência ainda mais evidente, incluindo para o ensino básico. Na Área Metropolitana de Lisboa, entre os anos lectivos 2015/2016 e 2020/2021 (ou seja, desde que António Costa é primeiro-ministro), diminuíram os alunos matriculados no ensino básico público (-3,2%) e aumentaram no privado (+5%). Na região Norte, no mesmo período, os valores do ensino básico são ainda mais acentuados para a diminuição na rede pública (-12,5%) e para o aumento na rede privada (+17,8%). Ou seja, os números não enganam: as famílias desconfiam cada vez mais da rede pública de educação e, para o próximo ano lectivo, as vagas já esgotaram nos colégios.
Na Saúde, a guerra ideológica contra os privados gerou a implosão de serviços no SNS. As notícias sobre o tema abundam. Mas, mesmo assim, vale a pena ler este testemunho desarmante de Ana Sá Lopes, no Público, ou analisar, como fez João Vieira Pereira no editorial do Expresso, o desempenho do Hospital Beatriz Ângelo em 2022 (no SNS) e em 2019 (com PPP e sem pandemia): entre 2019 e 2022, o hospital deu menos 55 mil consultas, fez menos 5 mil cirurgias, observou menos 50 mil doentes nas urgências, mas custou mais 27 milhões de euros. A conclusão é óbvia: a exclusão dos privados aumentou os custos no SNS e piorou a qualidade dos cuidados médicos à população.
É politicamente notável que os governos de António Costa tenham atravessado este caminho sem enfrentar controvérsias. Aliás, tudo isto foi feito sob aplausos ideológicos — dos parceiros de geringonça e de quem acredita que os serviços públicos devem ser prestados em exclusivo pelo Estado. Como sempre foi evidente, estavam enganados. Agora, tornaram-se eles próprios cúmplices dos “vilões neoliberais” que inventaram e perseguiram em discursos e artigos de opinião: afinal, a melhor forma de promover os privados é contribuir para a falência da rede pública. E ninguém fez tanto por isso como a geringonça e os governos de António Costa.