1 Mal Luís Montenegro acabou de falar uma noite destas no Algarve e logo, como moscas, houve um voo imparável de palavras, aterrando sobre as ouvidas minutos antes, ao líder do PSD. Uma sanduíche de palavras sem nada no meio.
Não que não fosse obrigatório — era — rever criticamente, racionalmente, numa palavra rever politicamente, o aguardado speech. (É melhor dizer semiaguardado: com o país em férias, distraído e distante, e quatro ou cinco écrãs de televisão a bombarem “informação”, falar em “rentrée” será um enigma mas é certamente um equívoco: rentrée de quê?)
2 Voltando ao sul: teria sido útil, sim, (nacionalmente útil) um olhar avisado sobre alguns passos da retórica política de Montenegro, (já lá vou), mas para começo de conversa fico com as conversas da oposição, ouvidas nessa própria noite e nas horas seguintes. Claro que o país atento já há muito — não é obviamente deste verão — se apercebera do downgrading ocorrido no espaço público, nas instituições, no debate político e parlamentar. Desceram-se não sei quantos lances de escadas na exigência, na qualidade, na vontade, na liderança; nos comportamentos cívicos, até na decência. No fundo, no entendimento do que é “servir” politicamente um país (mais que um partido ou uma clientela).
Mas há dias, não sei se devido ao intervalo político que não houve, se a férias, moscas ou calor, as apreciações das lideranças da oposição quanto ao discurso do chefe do governo foram, em vários tons e sons, confrangedoras. Um alinhamento de trivialidades, ressentimento ou pura irresponsabilidade. Foi conforme.
Duplamente imperdoável: 1) teria sido preciso perguntar algumas coisas ao chefe do Governo, entre elas se há algum piloto de contas a bordo ou o que entende ele por “liberalismo”, por exemplo; 2) Teria porém sido preciso fazê-lo com argumentação séria e não alinhavando frases que, de tanto ouvidas, sempre as mesmas, a propósito de seja qual for o tema, menorizam a oposição, toda ela, dinamitando o seu estatuto. Uma incompreensível auto-desqualificação: há partidos ancorados exclusivamente num bota-abaixismo compulsivo, e tudo compulsivamente exigindo ao governo, e pouco ou nada a eles mesmos; outros a não quererem “ser maçados”, outros ainda achando “pouco” as prendas oferecidas aos pensionistas e desafiando a que o governo seja “mais” generoso.
As coisas são difíceis nas oposições mas não era preciso serem tão más: os últimos dias anunciam-nos justamente que este estado de mediocridade é para continuar. A pobreza argumentativa não pode ser lida de outra maneira. Da qual é sinal a desfaçatez quase risível, se não fosse tragicamente reveladora, com que o PS deplora o estado da Saúde, passando ao lado dos estéreis oito anos de poder socialista que o país testemunhou ao vivo e em directo: sim, houve muito dinheiro atirado sobre o sector… e para quê? (E os outros “sectores”? E os milhões do PRR apenas só aplicados em cerca de 26%…?)
Tudo indica assim que o PS se vai manter na sua maledicência gratuita, insistindo que o “diálogo” e a “cedência” venham apenas do governo, mas sobretudo de um lado que não seja o seu (como se fosse politicamente possível, plausível, democraticamente aceitável uma governação feita pelo Parlamento e à margem do Executivo).
As esquerdas, mesmo que não pareça, seguirão o PS, precisam dele como de pão para a boca. O orçamento? Até ao fim haverá tudo o que a nobre arte do teatro fornece a uma encenação: hesitações, aflições, emoções, acusações, negociações. Toda a política parece ter — tem — hoje o seu eixo de gravidade assente na passagem do cabo do Orçamento do Estado, mas que não haja ilusões: a vida política continuará na mesma. Ferida da mesma fragilidade governativa, contaminada pela mesma medíocre oposição, presa à mesmíssima instabilidade. É da natureza do quadro político e partidário que aí está.
Numa palavra: o governo continuará, não sabemos é se durará. (Não é nada a mesma coisa.)
3 Quanto ao primeiro-ministro — sobre quem já discorri sobre as suas qualidades de maestro; a bela escolha de alguns ministros; a preferência pela relação, mais reservada e sobretudo institucional antes do mais, que escolheu ter com o Presidente da República; a sua serenidade-sobriedade-bom senso, bom sistema nervoso, no modo como actua ou intervém publicamente — espantaram-me duas coisas: 1) o seu desenvolto à vontade face à despesa pública que (aparentemente) a faz somá-la, em vez do contrário — e mesmo conhecendo-se o saber técnico do seu prudente ministro das Finanças, intriguei-me; 2) o estranho constrangimento de Montenegro face ao “liberalismo”, não se alcançando de que foge a sete pés no vasto conteúdo e significado da palavra. Claro que o último resultado eleitoral legislativo colocou politicamente o PSD ao centro do xadrez político, mas convém acautelar o centro-direita e a própria direita. Era melhor tratar o “liberalismo “de outro modo, foi à custa destas e de outras que o Chega cresceu.
E finalmente tomei boa nota do selo colocado na morte oficial do passismo. O primeiro-ministro admira Sá Carneiro e inspira-se em Cavaco, está no seu pleníssimo direito, a responsabilidade da escolha política é exclusivamente sua, e é boa. Estranhei apenas que — como quem bebe um copo de água — ele sinalize que já nada lhe dizem os quatro terríveis anos de um combate político que do princípio ao fim também protagonizou e com verve e fibra política (eu lembro-me); e cujo epílogo feliz — na vitória eleitoral, na re-credibilização exterior do país e na herança deixada de contas certas — devia orgulhá-lo mais do que embaraçá-lo.
Não é novo, mas um dia alguém terá de contar esta história.