“O Mal não deve ser imputado apenas
Àqueles que o praticam, mas também,
Àqueles que poderiam tê-lo evitado e
Não o fizeram”.
Tucídides (460 – 396 AC).

Como sabem a minha profissão é a de aviador, tanto no âmbito militar como no civil. E é do Ar (e também do Espaço) que melhor se pode ver a realidade do país em termos de ordenamento do território.

A “Fotografia” é sempre a três dimensões. E, como diria o velho Séneca, “a toupeira não pode ter do mundo a mesma visão que a águia!”.

Ora do ar, a panorâmica, no âmbito que estamos a tratar, não é nada que nos possa deixar descansados.

Só quem sobrevoar os arrabaldes de Lisboa e Porto, por exemplo, se consegue aperceber bem do caos urbanístico existente, do mesmo modo que se pode aferir a desertificação e abandono a que foi votado o interior do país, relativamente à faixa litoral de 50 km de largura que vai de Braga a Setúbal, onde dentro de pouco tempo não haverá um hectare para plantar batatas e a densidade passará a causar sintomas de claustrofobia, numa curva descendente de qualidade de vida. Isto para já não falar no Algarve, onde a breve trecho não haverá qualquer propriedade em mãos portuguesas e onde a língua de Camões será remanescente e residual.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Com isto dito, façamos uma pequena incursão para melhor situar a problemática em termos de objectivos e realçar a importância do Ordenamento do Território.

Fá-lo-ei sem grandes preocupações de hierarquização.

Objectivos do ordenamento do território

Este visa nomeadamente:

  • A sustentabilidade da vida das populações e a possível melhoria da qualidade da mesma;
  • O desenvolvimento harmonioso da Agricultura, Silvicultura, Pecuária, Pesca e exploração de rochas e minerais;
  • A integração do sector secundário (indústria) com o sector primário acima referido;
  • Harmonizar o sector terciário – no que lhe competir – de modo a servir os dois anteriores e as necessidades básicas das populações;
  • Garantir a melhor gestão da água, do ar e do solo, sua preservação e qualidade. Garantir o saneamento básico;
  • Preservação da paisagem e áreas de lazer;
  • Preservação da vida selvagem;
  • Preservação do património;
  • Permitir a melhor gestão da caça e pesca desportiva;
  • Estabelecer normativos para os planos de urbanização de vilas e cidades;
  • Permitir o estabelecimento de áreas protegidas, reservas naturais e áreas de servidão marítima, aérea, militar e outras;
  • Minimizar os eventuais efeitos negativos das condições meteorológicas, actividade sísmica e vulcânica e outros acidentes potenciais;
  • Estabelecer um sistema de transportes e comunicações que sirva tudo o resto;
  • Manter actualizado o cadastro de todas as propriedades urbanas e rurais, existentes e regular o seu uso.

Os grandes princípios para tudo isto encontram-se espelhados na Lei nº 31/2014, de 30 de Maio.

Tudo o que atrás expus deve ser integrado o melhor possível, o que depende muito da interacção entre os órgãos centrais do Estado e as Autarquias, e correspondente organização político/administrativa.

E este é, indubitavelmente, um dos fulcros do problema, sendo o principal factor negativo a corrupção existente, que se tem espalhado por todo o lado, qual mancha de óleo. E que se tornou transversal a quase tudo!

O primeiro aspecto potencia, todavia, o segundo. Isto fica já aqui dito e com veemência, já que se tornou numa chaga moral e material que nos acossa e que tem que ser atacada à bruta, se quisermos resolver verdadeiramente qualquer problema.

Finalmente, para o requerido no tal ordenamento do território ser bem-sucedido no tempo, tem de ser feito em termos de sustentação ambiental – o que aliás decorre do que já afirmei – não por estar na moda, mas porque é relevante, só ganhando em ser podado de exageros inúteis e extremismos descredibilizantes.

Um último aspecto que deve ser considerado: o mais importante, e de que sintomaticamente ninguém fala ou a que ninguém liga peva, é que tudo o que se fizer deve estar em consonância com os requisitos necessários à Defesa e Segurança Nacionais. Por uma razão simples que talvez nunca tenha ocorrido aos leitores: a de que pouco importa haver ordenamento do território se não estivermos cá para dele usufruir!

Os incêndios florestais

Está na altura, portanto, de entrarmos no magno problema dos fogos florestais. Tais fogos representam uma disrupção catastrófica de muito do ordenamento territorial.

Mas não só desse ordenamento: os seus danos são incomensuráveis e afectam toda a nossa comunidade, quer em termos materiais quer em termos morais.

Esta desgraça tem originado milhares de artigos, comentários, estudos, entrevistas e imagens, nos últimos 40 anos – pois esta sanha incendiária, recordo, apenas começou a sério desde então e nunca melhorou. Antes disso não era assim. Queria deixar este dado para vossa reflexão.

Porém, o país em termos gerais e os órgãos do Estado em particular têm demonstrado uma grande incompetência, inépcia e descaso em resolver este drama que se abate com cadência anual, sobre todos nós.

Comecemos pelo “ABC” de toda esta problemática, ou seja, como se gera um fogo.

Relembremos: só há fogo se houver uma conjunção de três coisas, conhecidas pelo “triângulo do fogo”, a saber: um comburente, uma matéria combustível e uma fonte de ignição (ou calor).

Ora a conjunção simultânea dos três componentes do dito triângulo é muito difícil de ocorrer naturalmente – experimentem colocar umas folhas secas na varanda cobertas com um fundo de garrafa, ou uma lente e esperem uma ignição espontânea, para terem uma ideia da coisa.

Deste modo resta a mãozinha humana como origem dos incêndios, já que se calcula que apenas 1% dos mesmos são devidos à mãe natureza. Ou seja a mão humana está por detrás de 99% das ocorrências!

Estas podem dividir-se em dois grupos:

  • Erro, descuido ou acidente (como é o caso de beatas ou fogueiras mal apagadas, queimadas mal executadas, etc.)
  • Propósito doloso, com origem em várias motivações que vão da alienação mental, vingança, prazer mórbido ou a troco de dinheiro.

Ora, até agora, a “desculpa” que se avantaja para justificar uns e outros, é a alienação mental.Deve ser por terem fechado o Júlio de Matos!

Tais acções configuram crimes com diferentes graus de gravidade. Mas não há maneira de adequar o edifício legal a estas situações e os juízes têm o estranho hábito de soltar a maior parte dos acusados destas práticas. Eis outra reflexão que vos quero deixar.

Perante este quadro devia ocorrer às gentes e aos responsáveis actuar em dois âmbitos: um é a prevenção, o outro é a repressão. Ora só se ouve falar na primeira – o que não está mal – mas ignora-se a segunda, o que é péssimo.

A prevenção é boa, pois, não evitando a origem dos fogos (a não ser se considerarmos a vigilância neste âmbito), ajuda a conter a progressão dos mesmos, minimiza estragos e facilita o seu combate.

Existem “n factorial” medidas que se podem fazer e meio mundo e outro terço esganiça-se a falar delas. Mas, na prática, quase nada se faz. Porque será? Eis outra reflexão boa para um período de debate.

Mas, pensem bem, mesmo que se fizesse tudo isto e mais que fosse, tal não iria evitar os incêndios, pois já vimos que eles deflagram maioritariamente por falha ou dolo humano. E já nem falo das centenas que ocorrem à noite!

Tem havido uma negação contumaz da realidade, ao não querer ver que as coisas se passam desta maneira, por mais que o senhor Director da Judiciária tenha querido acusar uma trovoada seca que, com pontaria certeira, fulminou com um raio uma infeliz árvore – cuja identificação no meio de tantas não oferecia dúvidas – dando assim origem ao incêndio de Pedrógão Grande e à maior mortandade a nível mundial registada num caso destes!

E também até hoje, apesar das dezenas de pirómanos presos todos os anos (imaginem os que falta prender!), não se conheça publicamente, nenhuma relação de acusa/efeito. Face ao exposto mandaria a lógica e o bom senso que se actuasse no âmbito da repressão.

É que não há prevenção, sensibilização, quiçá afectos, que possam evitar o descuido e o dolo, a não ser o temor que o descaso, e sobretudo o crime, possa resultar em graves danos para o seu autor e, por outro lado, esvazie os “ganhos”, a que o pirómano possa aspirar, o que deve incluir a “mão” que eventualmente esteja por detrás dele.

E aqui é necessário fazer um levantamento seguido de escrutínio e investigação apurada, de todas as áreas de negócio – pois tudo o que se passa configura e aponta em grande parte para negócio – que possam estar interessadas em beneficiar desta malvadez diabólica em vez de estarem sempre a culpar o clima que, pelos vistos, tem as costas largas!

Resta o combate aos incêndios. Aqui entramos noutro mundo.

Esta é a área onde aparentemente não faltam meios. Creio até que haverá meios a mais…

Este é o reino da Autoridade Nacional da Protecção Civil, organismo meio anárquico, sem escola, organização, carreiras, doutrina e sobretudo hierarquia capaz, e que se transformou num feudo das organizações partidárias que dominam os governos!

O que representa outra tragédia.

Seria necessário refundir tudo isto de alto a baixo, o que inclui os bombeiros voluntários, já que os profissionais, os sapadores bombeiros, estão confinados a fogos urbanos, em Lisboa, Porto, Coimbra e Setúbal (não sei se mais alguma cidade).

Ora estou em crer que os bombeiros têm que deixar de ser voluntários, ou seja, amadores e a tempo parcial. Aliás o voluntariado passou a ser um mito, pois a maioria dos voluntários estão avençados e são contemplados com benefícios sociais.

Tem que se apostar nos sapadores bombeiros e tem que haver selecção e instrução técnica adequada, com comandamento e enquadramento capaz.

E deixarem de vez de andar a brincar aos soldadinhos, inventando simulacros de uniformes, postos, ordem unida e posturas que, por serem postiças, se tornam ridículas e inoperantes.

E, claro, os meios aéreos devem passar a ser operados pela Força Aérea – a qual não tem dinheiro, pessoal, ou outros meios, para mandar cantar um cego – sem embargo de no estado actual ir levar muito tempo até estar capaz de cumprir esta missão eficazmente, desde o dia em que lhe atribuíram essa missão! O que está longe de ser líquido.

O fiasco da criação da Empresa de Meios Aéreos (EMA), na dependência do MAI/ANPC; o custo incomportável dos contratos de meios civis (as notícias de corrupção, vindas agora de Espanha, só confirmam o problema); a burocracia de tudo; os processos em tribunal; os problemas e custos de manutenção; o problema do comando e controlo, etc., etc., mais do que o justificam.

A Força Aérea deve ainda desenvolver um projecto de vigilância através de “drones”, que está ao seu alcance fazer.

É claro que a Força Aérea (também o Exército e a Armada) não pagam comissões nem horas extraordinárias ou praticam trapalhadas associadas e até comuns, com negociatas. Mas, estou em crer que tal se deve assumir como uma mais-valia e um bom exemplo…

E, já me esquecia, também não albergam “boys e girls” dos partidos políticos.

Finalmente é absolutamente necessário que se produza legislação clara, despida de rodriguinhos e alçapões – típica dos bacharéis em direito que tiveram maus mestres ou se esqueceram do que os bons lhes ensinaram – que corte cerce nas ilicitudes em todo este âmbito e permita meter atrás das grades – não em hotéis de três estrelas – os culpados por actos criminosos, até para prevenir que a população comece a fazer justiça pelas próprias mãos. Que é o que apetece fazer…

Finalmente parece-me do mais elementar bom senso que o ordenamento legal que regulamenta os órgãos de comunicação social obrigue, sobretudo as televisões, a um conteúdo informativo sucinto, austero e pedagógico, do modo como fazem a cobertura dos incêndios, em vez de massacrarem o público com horas de reportagem que, por um lado angustiam as pessoas e, por outro, contribuem para tornar outras insensíveis, ao passo que incentivam indirectamente os tarados e os potenciais criminosos.

Uma questão de Segurança Nacional

O que se pode concluir de 40 anos de acção dos órgãos do Estado perante esta “debacle” dos incêndios florestais é o de uma alta dose de negligência, incompetência e inépcia.

E assumindo-se o Estado como laico – embora a Nação não o seja – parece que estão sempre à espera de um “milagre” para que o problema se resolva. A não ser que sejam também coniventes…

A única coisa que os sucessivos governos souberam fazer foi despejar (é o termo) milhões de contos e euros no combate aos incêndios. Ora creio não me enganar ao dizer-vos que quanto mais dinheiro despejarem, mais fogos haverá.

Pois onde há dinheiro cheira a negócio…

Nunca foi feito um plano, com objectivos de curto, médio e longo prazo, que organizasse a prevenção, o combate e a repressão, sobre esta tragédia continuada que se abateu sobre o país.

Talvez porque tal não dá votos, os ciclos de eleições sucedem-se constantemente e a lógica dos partidos é a do “bota abaixo” e da guerra civil permanente, o que impede qualquer tipo de governação séria, institucional e prolongada no tempo.

A problemática dos incêndios assemelha-se a uma guerra de guerrilha onde são praticados actos de terrorismo. É uma questão de Segurança Nacional.

E, como sói dizer-se, guerra é guerra.