A maioria das notícias que nos chegam são más, quando não trágicas. Em Portugal, a estagnação das últimas décadas contribuíram para o fim de uma perspectiva de futuro e o descalabro dos serviços públicos, de que o INEM é o exemplo mais emblemático. Lá fora, com a possível queda da Ucrânia perante uma Rússia que nunca se esqueceu de ser imperial, apesar de o Ocidente ter fechado os olhos a essa desagradável realidade. A vida não é fácil para os ucranianos, as primeiras vítimas de uma nova guerra fria, como tão bem a descreveu João Pedro Gomes aqui no Observador. Nova Guerra Fria que, à semelhança da primeira, pode ser quente em países com os quais Portugal tem uma ligação especial, como Moçambique, Angola e São Tomé e Príncipe. As questões de defesa, em Portugal, já não se cingem às nossas fronteiras, à Europa ou sequer à NATO. Abarcam todo o Atlântico Sul

Iniciei a minha vida adulta dos anos 90. Apesar de já ter nascido, não vivi politicamente o 25 de Abril nem o PREC. A minha primeira memória política são os comícios da AD, os cartazes de Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Ribeiro Telles, os três habitualmente colados nas paredes por essa ordem. E, claro, a morte de Sá Carneiro, num dia que lá em casa terminou debaixo de um silêncio triste, próprio do fim de algo que não houve meio de saber o que podia vir a ser.

Na década de 90, a vida política era aborrecida. Ao ponto de não ter feito parte dela. Um político era um tecnocrata e eu jamais seria um tecnocrata. Não é para mim agora, como não foi para mim naquela altura. Politicamente falando, os anos 90 foram uma seca porque os que faziam política sem saberem o que era a política acreditavam que a história tinha sido vencida de vez. Que daquele tempo em diante, os ódios seriam coisa do passado, fruto de tempos antigos e ultrapassados. A riqueza e a democracia trariam as luzes. Alguns, poucos e pouco escutados, ainda alertaram que se a democracia era a voz do povo, então o povo teria muito que contar e contas a ajustar. Ninguém se importou. Outros, avisaram que no início do século XX também se acreditou que o comércio e o facto de os reis de então serem primos uns dos outros impediria um conflito na Europa. Mas a vida corria fácil nos anos 90 e confundiam-se registar verdades desagradáveis com a possibilidade de reacender a história. Para o evitar, preferiu-se esconder a história debaixo do tapete.

E, assim, cresci a olhar para as décadas de 70 e de 80 com alguma melancolia. Nessa altura, a vida não fora fácil, mas tinha sido interessante, lutava-se por algo, uma melhoria que estivesse conectada com o passado. Precisamente o oposto dos anos 90 em que nada se discutia que não fossem números e conquistas no quadro de estatísticas. E ainda por cima, a vida nem sequer era fácil para os que situavam fora da nova paz kantiana europeia. Que o digam as gentes do Ruanda, os povos dos Balcãs, os argentinos com a hiperinflação, mais os diversos estados atingidos pela crise do sudeste asiático. Os sinais acumulavam-se, mas não se discutiam não fosse o passado despertar.

Tudo isso mudou com o 11 de Setembro de 2001. E tem vindo a mudar com o passar dos anos. Ao ponto de, em 2024, corrermos riscos impensáveis, mas que eram previsíveis. Olhando para trás, os sinais estavam todos lá. Mas houve ignorância, mal-entendidos e, o mais importante, uma vontade em fechar os olhos. Não vou correr o erro tão rotineiro dos que apontam o dedo ao Francis Fukuyama por ter escrito o Fim da História. Fukuyama nunca disse que a história tinha terminado e uma realidade do passado. Limitou-se a dizer que a história hegeliana, a entendida de acordo com a teoria de Hegel, tinha chegado ao seu fim com a percepção, por parte dos povos, que o liberalismo político e económico era o culminar do processo histórico, o fim dessa caminhada de busca das propostas para resolver os problemas e anseios das pessoas. Não que se deixassem de se produzir factos e acontecimentos (também estes históricos) que tentassem contrariar essa percepção. Ou dito de outra forma: a história (enquanto desenrolar de acontecimentos humanos) jamais deixaria de se desenrolar porque haverá sempre quem se oponha ao culminar do processo do melhor modelo político e económico.

Foi essa luta, esse combate político que regressou à vida. Os tempos de hoje não são fáceis, mas de extrema violência. Sucede que a tragédia da incultura, que é idolatrar a ignorância como algo nobre, terminou. Vivemos tempos interessantes, tempos que são os nossos e para os quais fomos chamados. Podem ver isto como uma desgraça. Eu encaro-o como um privilégio.

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