1 Há muita boa gente que aprecia capicuas, anos bissextos, o numero 13, coisas assim. Como qualquer supersticiosa de boa cepa rejeito veementemente tudo isso.
No Brasil, nos primeiros minutos de 2020, com um copo de champanhe na mão e Copacabana aos pés, teria preferido brindar a um ano vindouro com outros algarismos, mas era o que havia: 2020. Mal eu sabia, mal sabíamos todos, que era isto: incerteza sem prazo e outra vida, sabe-se lá até quando. Os filmes de ficção cientifica costumam demorar um pouco menos.
2 Mas há pequenos intervalos, breves espaços de luz, bóias de salvação. No cruzamento da aflição do vírus com a incógnita americana – à hora a que escrevo nada se pode saber – agarro-me a uma dessas bóias. Com a plena consciência de que só elas nos podem aclarar o desconhecido que tacteamos. E que só elas – a atenção, a curiosidade, a não desistência do real – nos manterão à tona desta prova. E nos municiarão para captar a vibração para além da pandemia, redescobrir a criatividade, percepcionar a singularidade poética de alguns momentos. São breves, mas são os benditos desvios da maldita dupla. Essa tormenta global que ficará registada na História como o assassino número 20/20.
3 É um livro. Mas uma contadora remetida à sua mera condição de contadora, vê-se aflita: e como definir o que ali está? É que o que ali está, é um bom bocado da alma e da “forma mentis” de Jorge Martins. Já conhecíamos o risco do seu desenho e o traço do seu pincel – magníficos, ambos – mas agora eis que o pintor nos chega de outro e mais inesperado modo, através da palavra. Outros artistas plásticos – e não poucos – também usaram o verbo como instrumento, mas julgo que não deste modo. Aqui não são diários, ainda menos memórias, não há disciplina cronológica nem propósito definido. Há um rio de pensamentos, fragmentos, aforismos, notas (talvez “ desabafos”, como me disse o seu autor); um rio que não parou de correr desde 1964, quando Jorge Martins começou, de si para si, a escrevinhar em caderninhos. O novelo das palavras desenrola-se à flor da pele, da observação, da vivência, numa viagem – mansa ou tempestuosa, terna ou rendida, incerta ou indignada, triste ou perplexa, banal ou sentimental -, que é desigual como desigual é, afinal, a própria vida, mas que captura, intacta, a vida do seu autor dentro de cada sílaba. E… que dizer de melhor de um autor – malgré lui, que se nos “oferece” assim? Que a oferta é bendita.
Vale a pena contar: no Outono de 2018 – quando não sabíamos que éramos felizes, lembram-se? – Jorge Martins é convidado pelo Museu de Arte Contemporânea de Badajoz, para uma mostra comissariada por Oscar Molina, brilhante intelectual, professor de estética e hoje dedicado à curadoria. A relação entre artista e curador viria, aliás, a desaguar em recíproca (e fértil!) admiração e cúmplice amizade. Meses depois, o director do também Museu de Arte Contemporânea de Vigo, Miguel Fernandéz-Cid, fez “absoluta” questão em que a “sua” casa acolhesse igualmente a exposição de tão esplendorosos desenhos. Assim foi: as obras moveram-se de uma para a outra cidade espanhola e os (breves) “escritos”de Martins que emolduravam a exposição em Badajoz, viajaram também para Vigo. Curioso e admirado, Fernandez-Cid pediu para ler mais. E leu. A descoberta empolgou-o. Como empolgara já Oscar Molina, quando com eles “privara”. Mereceriam livro, mas desta feita como que ao contrário: a escrita é que seria emoldurada por alguns desenhos. Assim foi de novo: “Cadernos-Cuadernos” é hoje um vasto volume em edição bilingue (português/espanhol), fruto da iniciativa do Museu de Vigo e do seu director. Mas – avisado adágio – como “a Cesar o que é de Cesar”, os “Cadernos”de Jorge Martins são também filhos da editora “Documenta”, de Manuel Rosa. Que o mesmo é dizer – mas não seria preciso – que são graficamente perfeitos. Eis uma história onde vários “beaux esprits”… se cruzaram. Para nosso privilégio (e bóia de salvação).
4 Há dias, no auditório 2 da Fundação Gulbenkian, viveu-se um desses momentos a que acima aludi. Raros e preciosos, porque verdadeiramente capazes de iluminar a sombra que tinge os dias. A sala também o terá percebido, a expectativa ia de par com o que ali se celebrava: a atribuição a José Tolentino de Mendonça do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural, dado pelo Centro Nacional de Cultura, no âmbito da sua estreita colaboração com a prestigiada Europa Nostra. Apesar da distância geográfica, do regresso feroz da pandemia a Itália e da agenda que se lhe conhece em Roma, a vinda de Tolentino a Lisboa tornou ainda mais grata a expectativa, amplamente correspondida. Dei mesmo comigo a pensar que talvez raras vezes naquela sala onde tantas, tantas vezes estive, se tivesse acolhido um tão inspirado uso do verbo: foi notabilíssimo o que se ouviu naquele fim de tarde e admirável o que o Cardeal Tolentino nos disse. Posso nomear os intervenientes que o antecederam – Isabel Mota, Graça Fonseca, Maria Calado, Dinis Abreu, António Guterres, Marcelo Rebelo de Sousa -, mas ficarei aquém. O que deixou rasto e memória foi a harmonia e a consonância entre todos eles no entendimento do que é ser culto e do que se pode fazer com a cultura: no modus operandi da palavra, na imperativa importância de se homenagear alguém como este homem de Deus, poeta e português nosso. Tolentino subiu ao pequeno palco, igual a si mesmo: simples, sereno, sorridentemente luminoso. Redimiu o livro de tantas mortes anunciadas, falando-nos dele polifonicamente, mas dizer isto é de novo ficar aquém. Só ouvi-lo, ou lê-lo, será o único gesto possível à altura do que nos concede quando fala ou escreve. Um bendito.
Percebi que em pouco mais de uma hora se tinha voltado à vida naquela sala.
5 Pequeno excerto da intervenção de José Tolentino de Mendonça:
“(…) Não podemos esquecer, porém, que a civilização que inventou o livro tal como até aqui o conhecemos, inventou também as condições requeridas para a sua leitura e que essas nos modelaram antropologicamente durante séculos e constituem um património cultural que precisamos de preservar. Pois quem inventou o livro inventou o silêncio da leitura; inventou essa forma íntima de temporalidade que torna o encontro com o livro indissociável do encontro connosco próprios; inventou a atenção, a aventura do conhecimento elaborada a partir de certas premissas e a curiosidade; inventou um regime social onde a actividade intelectual era admitida e, não podemos esquecer, esse regime libertou o homem, revelando-lhe a sua dignidade; inventou o direito universal à alfabetização e multiplicou as comunidades de leitores; inventou o individuo e a vida privada; inventou a confiança na consistência da linguagem e as bibliotecas; inventou os salões literários, os cafés e as praças como lugares de debate; inventou os sistemas críticos e hermenêuticos, que garantem não só a legibilidade dos livros, mas a compreensão dos mundos possíveis; inventou as escolas monacais e a ideia moderna de universidade; inventou o humanismo e a liberdade de expressão, que é sempre inseparável da liberdade de ser. O livro acompanhou o nascimento e expansão das línguas modernas do Ocidente e assistiu ao desenvolvimento das suas possibilidades expressivas, cognitivas e de imaginação. Quem inventou o livro inventou uma certa forma de produzir história e inventou também a figura de leitor que ainda somos.
O património humano, cultural e espiritual que o livro representa é, por isso, incalculável. O que o livro põe em jogo é muito mais do que o livro. Não nos podemos desfazer dele como se fosse um arcaico vestígio destinado a ser progressivamente desativado. (…)”