Rui Tavares e André Ventura, com dimensões diferentes, foram dois dos vencedores da noite eleitoral. Desde então tanto um como outro têm insistido em duas teses delirantes que, por muito que sejam possíveis do ponto de vista teórico, estão feridas de racionalidade e até de legitimidade política.
O porta-voz do Livre tem feito uma interpretação criativa dos resultados eleitorais, em que divide o Parlamento em três blocos: o de esquerda, com 91 deputados (77 do PS, 5 do BE, 4 da CDU, 4 do Livre e 1 do PAN); o que chama de “direita democrática”, com 87 deputados (77 do PSD, 2 do CDS e 8 da IL); e um terceiro, do Chega, com 48 deputados. A tese é a de que o maior desta tríade de blocos — após contados os votos dos círculos externos — deve governar. O conceito é muito confortável, e caseiro (ótimo em causa própria), já que, embora faltem apurar quatro mandatos, basta o PS conseguir um deles para o bloco à esquerda, onde está o Livre, governar. Assim era fácil.
O sonho de Rui Tavares não tem legitimidade política e é uma impossibilidade prática. O que Rui Tavares propõe é que 135 deputados — de quatro partidos que fizeram campanha e convenceram eleitores a garantir que tudo fariam para desalojar o PS do poder — permitissem que um ainda mais minoritário bloco com 91 deputados suportasse um Governo do PS. Mesmo que em vez dos 135, Rui Tavares estivesse a contar apenas com os 79 da AD, Luís Montenegro foi claro na defesa de que, quem governa, é quem fica em primeiro lugar em votos. Seja quais forem os caprichos do método Hondt.
A tese do líder partidário que teve 3,26% dos votos é tão delirante que nem o Bloco de Esquerda nem mesmo o PS — outros eventuais beneficiários — a defendem. E mesmo que, por hipótese, o PS ultrapassasse o PSD em número de votos com a contagem dos círculos externos e Marcelo Rebelo de Sousa optasse por indigitar Pedro Nuno Santos, esse seria sempre um governo iogurte: com prazo de validade e para durar cerca de um mês. É óbvio que esse cenário (muito provável) causaria um turbilhão no PSD, mas dificilmente a Comissão Política Nacional (ou mesmo o Conselho Nacional, se chamado a isso) optaria por viabilizar um governo do PS no atual quadro parlamentar. Nem Alexandra Leitão, que veio desautorizar Pedro Nuno Santos no domingo, deve acreditar nessa possibilidade.
A outra tese delirante saída das eleições é a de André Ventura. O presidente do Chega diz que Luís Montenegro devia fazer um acordo com o partido que lidera porque é isso que resulta do voto e da vontade dos portugueses. Além disso, lembra, tem a força de mais de um milhão de votos. E tem. Mas há um facto que não pode ser ignorado: mais de 80% dos portugueses não votaram no Chega. Quase 60% votaram mesmo nas duas forças do “centrão” político e em termos de deputados PS e PSD já têm neste momento (mesmo que o Chega consiga dois dos quatro deputados dos círculos externos) mais de dois terços do Parlamento (67,82%).
Ao contrário do que André Ventura diz, o facto de Luís Montenegro não fazer um acordo com o seu partido não significa desrespeitar as 1.108.797 de pessoas que votaram no Chega. É precisamente o contrário. Ao ter sido cristalino a defender um “não é não” ao Chega durante a campanha, caso o líder da AD fizesse agora um acordo com Ventura estaria a desrespeitar os 1.811.027 de eleitores que votaram nele com essa garantia prévia.
Substituir Luís Montenegro, que liderou a força mais votada nas últimas eleições, é outra tese do domínio do delírio. As forças vivas de que Ventura falou começam a sair da toca, mas o manifesto divulgado esta terça-feira mostra que são, afinal, mais forças mortas — com pouco ou nenhum peso no PSD atual.
André Ventura deve, sim, concentrar-se nas forças parlamentares. É lá, no Parlamento, que terá a legitimidade para influenciar a governação, viabilizar ou inviabilizar orçamentos, e ir ao encontro das reivindicações dos eleitores do Chega. E não tem desculpas. Se Daniel Campelo, sozinho, conseguiu negociar a instalação de uma fábrica de queijo em Ponte de Lima, que o IP9 entre Viana do Castelo e Ponte de Lima fosse uma SCUT, a construção de uma ponte de ligação do IC28 à margem esquerda do rio Lima, recuperar diversas estradas do distrito de Viana, a construção de um porto de pesca em Vila Praia de Âncora ou ainda a ligação de Paredes de Coura à A3, André Ventura com 48 (ou mesmo 50 deputados) tem obrigação de conseguir muito mais. É aprender com o tio Ben do homem-aranha: um milhão de votos não traz só um grande poder, traz uma grande responsabilidade.