Não deixemos escapar esta oportunidade para aplaudir o Parlamento porque elas não abundam. A forma como foi conduzida, desenvolvida e concluída a Comissão Parlamentar de Inquérito ao BES/GES foi exemplar. Cumpriu a principal missão que se propunha: contribuir para um conhecimento profundo dos factos e para o apuramento de responsabilidades, sobretudo políticas mas também as que possam ter relevância judicial. Hoje, depois de largas dezenas de horas de audições e com o extenso e detalhado relatório final, o país conhece muito melhor o que aconteceu, como aconteceu, por que aconteceu, que consequências teve, quem decidiu o quê e porquê. Subsistem dúvidas importantes, como o destino de dinheiro a que se perdeu o rasto. Mas esse é um trabalho para entidades com poderes de investigação judicial que ultrapassam o mandato e os meios de uma CPI. Esperemos que estas estejam agora também à altura da sua missão e que a executem com rapidez.

Por que é chegámos, desta vez, a um resultado tão diferente do de outros trabalhos semelhantes que recordamos do passado, com a CPI do BPN à cabeça? Porque desta vez os deputados se concentraram na missão de esclarecer e ajudar a encontrar a verdade em vez de estarem mais preocupados em disfarçá-la ou ocultá-la em nome de interesses partidários ou cumplicidades de ocasião. Porque se prepararam tecnicamente para um caso de elevada complexidade empresarial e financeira. Porque foram assertivos e duros quando tiverem que ser. Porque um banqueiro que faz uma gestão fraudulenta foi visto como um banqueiro que faz uma gestão fraudulenta independentemente do ponto de observação ser mais à direita ou mais à esquerda. Porque um supervisor bancário lento e com medo de exercer o seu poder não passa a ser zeloso e competente por mera conveniência política. Porque a honestidade intelectual e o sentido de missão e serviço público imperaram sobre calculismos de bancada ou clubismos de manada.

Os deputados exerceram a sua autoridade, recusaram ser figurantes de uma má peça de teatro de revista mesmo quando alguns protagonistas tentaram fazer o seu “número” – e aqui recordo particularmente os lamentáveis momentos de falta de memória de Zeinal Bava e de falta de língua de João Moreira Rato.

Os deputados foram dignos e deram-se ao respeito e com isso dignificaram o Parlamento e ganharam o nosso respeito. Não é coisa pouca, nos dias que correm.

Este caso deve fazer-nos reflectir sobre o exercício de funções públicas e a utilização dos poderes públicos. Eles existem no edifício legislativo e institucional. Temos abundantes leis e organismos – até demais, em muitos casos – que têm como missão a regulação, a supervisão e a defesa do interesse público contra as tentações e os abusos de poderes parcelares e particulares.

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O problema é que são também abundantes os casos em que, na prática, esses poderes não são exercidos ou são exercidos de forma frouxa e deficiente.

O caso do Banco de Portugal é um deles e vem a propósito. Um supervisor não pode sentir-se intimidado e desconfortável por ter de desassossegar um “dono disto tudo”. Não pode ter de pedir licença para regular ou desculpa pelo incómodo que resulta do exercício do seu poder. Ainda que o epíteto “dono disto tudo” tenha sido ganho pela proximidade junto de vários governos, pela sua influência em vários sectores e empresas poderosas e por uma comunicação social algumas vezes reverente. Tudo isto só prova que o falhanço no exercício de poderes é vasto e não exclusivo de algumas entidades públicas. E que facilmente se confunde respeito com respeitinho e educação com submissão.

A supervisão bancária não é, infelizmente, a única área que demonstrou estes traços culturais nos últimos tempos.

Recordo-me da fundação da Autoridade da Concorrência, há quase década e meia. Abel Mateus terá cometido erros na condução de alguns processos e na excessiva demora com que tomou algumas decisões. Mas o seu desassombro, a sua saudável cegueira em relação ao poder e à dimensão das empresas ou sectores que não hesitava em incomodar foram uma janela que se abriu num país onde concorrência era apenas sinónimo de ter um snack-bar ao lado de outro. Ganhou muitos inimigos na PT e nas farmacêuticas, nas empresas de energia e na banca? É verdade. Mas queremos reguladores candidatos ao “prémio simpatia” ou que exerçam a sua função sem estarem preocupados com o cargo empresarial que vão desempenhar a seguir? Abel Mateus rapidamente colocou a Autoridade da Concorrência no mapa e incomodou tanta gente que enquanto não foi substituido não houve descanso em meio mundo. Seguiu-se-lhe Manuel Sebastião, vindo do Banco de Portugal e da sua cultura “faz-te morto”. A Autoridade da Concorrência desapareceu – esperando-se que agora possa recuperar o seu prestígio. Tornou-se “amiga” das empresas e dos negócios. Já vimos capturas de reguladores mais substis do que esta.

Enquanto isso, no mesmo tempo e no mesmo país, a ASAE investia em força e com força contra as colheres de pau nas cozinhas dos restaurantes, os galheteiros nas mesas de refeição, os tremoços vendidos a granel em feiras e outras ameças intoleráveis ao equilíbrio do jogo económico e aos interesses dos consumidores. É tão mais fácil ser forte com os fracos…

Podemos também recordar a Anacom e a desastrosa condução da introdução da Televisão Digital Terrestre, que levou centenas de milhares de famílias a transferir verbas avultadas para operadores de telecomunicações.

E alguém conhece a real utilidade de uma coisa chamada Comissão da Carteira Profissional de Jornalista para além de, de dois em dois anos, extorquir umas dezenas de euros a cada jornalista em nome de uma burocrática renovação de título profissional sem que se conheça alguma avaliação ética e deontológica que justifique o acto?

No recorrente debate sobre a dimensão e o papel do Estado confundimos frequentemente Estado forte com Estado gordo. Olhamos demasiado para a dimensão, para o número de funcionários e para a quantidade de organismos e muito menos para a sua utilidade, para a forma como, de facto, exercem funções e para a respectiva eficácia.

Salvo raras e honrosas excepções, quando se fala de regulação, supervisão e controlo cruzado de poderes, esta é fraca. Porque está capturada pelos interesses que é suposto controlar, porque o poder político é muitas vezes o primeiro a praticar e incentivar promiscuidades, porque a porta giratória entre os cargos de reguladores e regulados não pára, porque começa no Parlamento a representação não assumida de interesses privados ilegítimos. Porque não há uma cultura de regulação e de firme exercício de poderes públicos. Porque ter “mau feitio” é trabalhoso, causa inimizades e fecha sabe-se lá que portas no futuro. Porque a país das corporações e do respeitinho onde “uma mão lava a outra” continua de boa saúde, obrigado.

No fundo, temos um Estado que não raramente se demite de uma das suas mais importantes funções e poderes: a regulação económica e financeira e o controlo cruzado de poderes.

A CPI do BES foi uma saudável excepção e deve ser celebrada por isso. Que seja um momento de viragem e possa contaminar os restantes poderes públicos.

Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com