Hoje. Estava a França a preparar-se para o actual estado de insurgência quando o presidente Macron se lembrou do Benim e se esqueceu de Portugal. Como não se tinha ele lembrado antes do Benim?! — deve ter-se interrogado Macron. Como se esqueceu de Portugal? – pergunto eu. E assim, numa fatal coincidência, ao mesmo tempo que o parlamento francês votava a criminalização do acto dos pais darem uma estalada num filho, os cidadãos sovavam e quase linchavam polícias, os polícias entravam nos liceus e mandavam os adolescentes (aqueles a quem os pais não podem dar um tabefe ou um raspanete) ajoelhar e colocar os braços atrás da cabeça como se fossem terroristas, lá surgia acabrunhada entre tanto carro incendiado e montras partidas, a imagem dos bronzes que o presidente Macron se propõe devolver urgentemente ao Benim. E a nós, nem um herbário? Foi certamente aturdido pelo estado das ruas francesas, que o presidente Macron apena referiu devoluções para África mas obviamente vai recuperar desse deslize e mandar rapidamente para Lisboa o chamado “Cabinet de Lisbonne” do Museu de História Natural de Paris. Afinal, em matéria de confisco nós não somos menos que o Benim: aquando da primeira invasão francesa, Junot chegou a Portugal devidamente assessorado sobre o que valia pena pilhar e foi expedito a mandar empacotar e expedir para França obras de arte, pedras preciosas, livros raros e colecções várias. Espera-se portanto que os coletes amarelos sensibilizados pela reparação desta injustiça desbloqueiem algumas estradas para deixar passar os camiões com o nosso património. É certo que quando aqui chegarem os inúmeros animais empalhados e outras peças que Junot nos confiscou, teremos de atender de imediato às reivindicações do Brasil sobre esse património pois muito dele tinha sido recolhido no Brasil na extraordinária expedição que Alexandre Rodrigues Ferreira ali levou a cabo, por ordem da rainha dona Maria I, entre 1783 e 1792. Infelizmente nem assim acaba ainda a problemática da devolução à sua verdadeira origem dessas peças por enquanto nos museus franceses, pois algumas delas foram recolhidas junto de tribos índias logo as peças, uma vez devolvidas ao Brasil, deverão ser entregues aos índios ou aos museus, eles mesmos um produto-símbolo da cultura dos colonizadores?… Como se percebe a questão das devoluções tem demagogia que sobra e não beneficiará mais ninguem além de alguns advogados e dos políticos que vivem do ressentimento.
A política de devoluções de espólios pelos museus dos países ditos coloniais não foi de modo algum inventada por Macron: há décadas que esta demagogia por aí campeia e nem sequer o facto de actualmente muitos dos espólios serem regularmente expostos noutros países e continentes a conseguiu parar. Como é óbvio “a coisa” já cá chegou e assim tivemos agora o anúncio da pretensão angolana ao seu património que está depositado no Museu de Etnologia (por ironia o mesmo que por razões ideológicas esconde o nosso património rural!) De devolução em devolução acabaremos todos mais pobres.
Amanhã. Em Marrocos, vai ser assinado um pacto mundial sobre migrações que é apresentado pelos mesmos líderes ora como fundamental ora não obrigando a nada. Chamar-se-á Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular. A acreditar nos seus promotores está lá tudo e o seu contrário. Mas onde está o texto desse pacto? Por exemplo, em Portugal para lá das declarações institucionais do ministro dos Negócios Estrangeiros e do ainda mais institucional texto da Lusa reproduzido em noticiários e artigos de jornal, o que se sabe sobre esse pacto? Fala-se de 23 medidas concretas mas não se detalha uma única. Muito menos se perdeu tempo a ponderar que, apesar de no texto do pacto ser dado como adquirido que os países podem agir como quiserem, a verdade é que nos países democráticos, logo com justiça independente, nada impede que se recorra aos tribunais para obrigar os governos a cumprir aquilo que está inscrito como um vago e piedoso propósito nos documentos internacionais que os seus governantes assinaram. Se se conseguisse por uma vez sair dos chavões do costume sobre a anti-imigração, o nacionalismo e a ultra-direita perceber-se-ia que a questão que levou à crise no governo belga a propósito da assinatura deste pacto é precisamente essa: por via dos tribunais nacionais e instâncias europeias de justiça, este pacto pode ou não criar obrigações aos países democráticos?
E na hora da verdade ou seja na próxima vaga de refugiados/migrantes qual é a interpretação que vale: a difusa dos dos compromissos e princípio orientadores que está inscrita no Projecto de Documento Final para a Conferência Intergovernamental ou a interpretação militante da Organização International para as Migrações (OIM)?
Por fim, em que ponto fica a liberdade de expressão após a assinatura deste pacto? Os paladinos da liberdade de expressão não sentem nenhuma questão após a leitura do objectivo 17º do pacto? É que sob o pretexto de “Eliminar todas as formas de discriminação e promover um discurso público com base empírica para modificar as percepções sobre a migração” (como não encontrei versão em português tomei a liberdade de traduzir) o que ali se estabelece em detalhe é a criminalização de quem discordar da imagem oficial sobre a imigração a par da institucionalização de uma propaganda totalitária sobre o assunto. Se nos outros pontos se pode discutir se o pacto dá apenas princípios orientadores ou acabará a fazer lei, no que respeita ao que se pode dizer e pensar sobre esta matéria não deixa dúvidas : tudo o que se desviar da linha oficial é criminalizado. O Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular tem parágrafos em que parece mais focado na criação de uma imagem de fachada no sentido totalitário do termo sobre as migrações do que propriamente em responder aos problemas concretos que as rodeiam.
Um pacto que ninguém viu, ninguém leu e ninguém percebeu nas suas reais implicações é um pacto de que vamos falar muito no futuro e não propriamente por boas razões.