1. “Nada acontece até ser contado” dizia Virginia Woolf que muito contou e bem contou. Tinha razão: o contar pode transformar um quinhão de vida num acontecimento. E se desistirmos contar, que outro destino para o não contado que um poço vazio? Penso muitas vezes nisso. Penso de cada vez que venho ao de cima de qualquer coisa que de imediato me sinaliza que há que contar. Contar sem que importe definir o fio – intuição? impulso? — que nos conduziu. Importa antes que o desatar do fio tenha trazido consigo aquilo que de tão misterioso altera a natureza das coisas, fazendo delas um “acontecimento”. E tanto faz que ele seja privado, pertença apenas a alguns, ou a todos: o que conta é o poder transformador do contar.

O escritor holandês Cees Nooteboom de quem leio agora um diário (“533 dias”, Siruela, Espanha) também se interrogava sobre isso mesmo: “como descrever algo que para o mundo nunca contaria como um acontecimento mas para nós, sim?”

Não preciso porém de recorrer à história dos 533 dias que Nooteboom passou na sua amada casa da ilha de Minorca para classificar de “acontecimento” uma noite inclassificável que testemunhei há dias e merece ser contada.

Passando eu agora a voluntária mensageira dessa noite.

2. Foi a meio de Julho na Capela do Rato. Alguém — ignoro quem — se propôs homenagear o poeta José Tolentino Mendonça celebrando a sua poesia e cantando-lhe os seus versos.

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Contar o límpido momento que lá se viveu, fá-lo ter acontecido. Foi emotivo, profundo, íntimo. Escolhidas por Leonor Xavier — “encenadora” do límpido momento — vinte e cinco pessoas “muito diversas”, encontradas no mar dos crentes ou nas águas dos não crentes, tornaram-se, com a sua voz, parte desta celebração, ramos da mesma árvore, veios da mesma folha.

Anunciadas por mera ordem alfabética e sem mais indicação que a sua profissão, cada uma dessas pessoas “diversas” subiu três degraus de madeira e por entre a espessura de um silêncio que parecia não ter fundo, nem fim, leu, murmurou ou disse as palavras do poeta. Escolha livre, sem ensaio prévio, nem prévia combinação: “tragam um livro do Tolentino e leiam um poema” apenas dissera Leonor.

Antes, ouvira-se, breve, uma flauta; depois, plangente, uma guitarra. Aconteceu assim. Numa intimidade só possível e entendível por estar tão enrolada na raiz silenciosa do que ali se queria dizer.

3. Há muitas espécies de silêncios, sabemos bem, e mesmo que nenhum ecoe do mesmo modo, nunca será demais evocar o que mora na Capela do Rato. É um silêncio só de lá. Seja a abarrotar de pessoas nas celebrações religiosas, ou vazia de gentes e almas; seja numa simples missa dominical ou em participados encontros espirituais ou culturais, há a mesma recolhida atmosfera, tingindo os dias desta Capela. Lembra os lugares dos primeiros cristãos, rezando escondidos e talvez atordoados pela sua nova condição de desafiantes de outra ordem; lembra a dureza da procura, a alegria do caminho encontrado, a perda, a pena, a luz, a chegada. Lembra muitas e contraditórias coisas ao mesmo tempo, é um silêncio fértil.

Sou desde há largas décadas frequentadora intermitente desta Capela. Quando pela primeira vez lhe bati à porta não o fiz por razões políticas (detestaria refazer a história) mas por ser seguidora e ouvidora do verbo lúcido e admiravelmente inspirado de quem lá oficiava nos idos de sessenta do século passado, o Padre Alberto Neto. Salvou-me pelo menos uma boa parte da alma.

Depois, mesmo que com intervalos ou ausências, nunca deixei de lá ir, e mais ainda com Tolentino Mendonça. O que talvez salve o tanto que há para salvar.

4. Um dia do ano de 2012, no silêncio solitário das instalações da “sua” Capela, José Tolentino Mendonça fez-me um convite temível: que eu fosse apresentar a Guimarães os intervenientes da próxima reunião do “Pátio dos Gentios” que nesse ano ocorreria em Portugal, depois de já ter passado em anos anteriores por diversos lugares europeus. O Pátio fora uma ideia nascida da inspiração, visão e vontade do Cardeal Gianfranco Ravasi para desbravar o diálogo entre crentes e não crentes e Ravasi seria justamente o “protagonista” desse do encontro. Figura tão fulgurante merece ser aqui contada, mesmo que fugazmente. E a sua proximidade e interligação tão profunda com Tolentino torna-me esse contar ainda mais obrigatório: ordenado Padre em 1966 na Diocese de Milão com 24 anos, loquaz e vivíssimo, brilhante aluno e depois brilhante professor em Exegese Bíblica, intelectual irradiando em mil direcções do saber, perito biblista e hebraísta, gostando de inovar e inovando, Gianfranco Ravasi cedo se tornou uma referência na diocese, na Universidade, na própria cidade de Milão. Nomeado Perfeito da Biblioteca Ambrosiana — um farol de cultura em toda a Itália –, a escolha revelava um eleito mas o eleito provaria o acerto da escolha. É que o grande teólogo e eminente biblista deixará luminosa assinatura na Biblioteca ao revelar uma imensa capacidade de conciliar o conhecimento da Bíblia e das raízes cristãs com a cultura, a arte, o saber literário. Fazendo pontes e alcançando grandes — ou talvez mesmo inauditas — linhas de transversalidade.

Maestro de tão diversas partituras, amassando o seu pão cultural com a Bíblia, escreveu sobre a alma, contou-nos Jesus, ofereceu-nos leituras para todos os dia das nossas vidas. Propôs-nos Deus.

Em 2007, já nomeado Bispo por Bento XVI, Ravasi foi escolhido para presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, criado vinte anos antes por João Paulo II. Uma escolha desafiante já que, em 1993, o Papa João Paulo decidira unir o “Conselho para o Diálogo com os Não Crentes”, com o “Conselho da Cultura”, fundindo-os num mesmo corpo institucional. Tratava-se agora de uma tarefa dupla e duplamente exigente: o encontro entre a mensagem do Evangelho e os intelectuais das artes, letras e ciências como homens e mulheres ao serviço do bem e do belo; e, por outro lado, a proposta de diálogo entre pessoas que não tendo fé, sinalizavam um sobressalto ou revelavam uma inquietação face ao transcendente.

A partir de então foram-se gerando proximidades até aí supostamente sepultadas. Ergueram-se pontes, abriram-se confluências.

Uma dessas confluências chamou-se Pátio dos Gentios.

Um “Pátio” que, a convite do Padre Tolentino, num dia de 2012 e em hora tão boa que mereceria ser contada, me levou ao norte para apresentar à plateia de Guimarães um convidado especial, o Cardeal Ravasi. (E João Lobo Antunes e Marcelo Rebelo de Sousa, também oradores de um memorável encontro).

5. Porquê tudo isto agora? Porque terei hoje, a propósito de Tolentino, procurado Gianfranco Ravasi, movida por uma espécie de imperiosa necessidade de o trazer aqui? Afinal de contas houve outras colaborações minhas com José Tolentino Mendonça (em que a leitura de uma Paixão com Luís Miguel Cintra, na Igreja de S. Mamede, na Semana Santa de 2016, não terá sido a menor delas).

Porquê então?

Talvez porque simplesmente eu os tenha achado, ao Cardeal Gianfranco Ravasi e ao futuro Arcebispo José Tolentino Mendonça, muito semelhantes, um ao outro. Na radicalidade da entrega, na marca de uma mesma espiritualidade, no uso que fazem da fé, na erudição e no brilho dos respectivos percursos, na transversalidade dos universos onde se movem. Destino parecido o destes dois homens que sempre operaram em nome de Deus na busca do absoluto.

Pescados à linha por Deus que um dia olhou para eles como costuma olhar para os escolhidos. Que, como se sabe, são bem menos que os chamados.

6. Este sábado, 28 Julho, dia em que na pedra antiga do Mosteiro dos Jerónimos o Cardeal D. Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa, o Cardeal D. António Marto e o Bispo Emérito do Funchal, D. Teodoro de Faria procederão á ordenação episcopal do Arcebispo Titular de Suava, Tolentino Mendonça, deixo um breve poema seu. Foi lido há dias na Capela do Rato e é um ténue sopro, como o bater de asa de uma borboleta num solitário entardecer de verão:

“Na corda bamba, entre silêncio e silêncio, a vizinhança de Deus” (in “A Papoila e o Monge”, Assírio e Alvim).