Passam os dias e a Covid não desarma, pelo menos na grande Região Metropolitana de Lisboa. A capital da nossa suposta modernidade. A meta de todos os sucessos turísticos e imobiliários. O comboio rápido da nova economia. O spot disruptivo que contava mais do que os outros em Portugal. Parece que caiu tudo em cacos.

A força da realidade foi a tramação do sonho. A realidade da vida das pessoas sem poupança, que precisa de trabalhar (muito) fora de casa para ganhar o pão. A realidade das pessoas que sobrevivem em bairros/guetos, onde a rua nua e crua é a única alternativa aos seus alojamentos precários, tantas vezes degradados e violentos, sem nenhumas condições, sequer, por exemplo, para a possibilidade de uma adequada socialização. A realidade das pessoas que não têm casa, quanto mais salas disponíveis para teletrabalho ou telescola, nem computadores, muitas vezes sem televisões. Pelo que os cafés dos bairros (e só algumas horas por dia) são a outra alternativa.

A pandemia veio destapar o manto diáfano e ténue da nossa esquizofrenia. O país dos amanhãs que cantam, do rodopio dos cartões de crédito e das viagens glamorosas, dos melhores gestores do mundo com salários milionários, do futebol da alta roda e carros de marca, e de todas as novidades comportamentais e transgénicas, veio chocar contra a vida concreta das pessoas.

Afinal, para grande transtorno da DGS, do Presidente e do Governo, as pessoas não são números. São de carne e osso. Sonham. Sofrem.

A estatística não lhes resolve os problemas. Aquele taxista, esta semana só teve três serviços. Aquele outro, que trabalha à comissão, levou ontem para casa 2,5 euros. Esta rapariga perdeu o trabalho (que não funciona em telesistema) e, sem meios, foi posta na rua do seu quarto pelo senhorio. Anda na rua, claro. Desconfinaram à força. Estão aflitos ou mesmo desesperados. Choram nas nossas ruas. Não querem coisas muito complicadas, nem andam a partir montras. Não incendeiam automóveis, nem querem decapitar estátuas. Querem uma mão e uma oportunidade. Precisam de trabalhar e de ganhar a vida.

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É exactamente para estas situações que existe uma coisa chamada Estado ou então o Estado não serve para nada. Um Estado que tem de ser imaginativo e criar soluções de apoio, de trabalho ou de emprego rapidamente. Que tem de entregar dinheiro ou pão às pessoas sem ser a juros. Sem subterfúgios e sem sofismas, sem burocracias enganadoras. Sem complexos de suposta modernidade. Assegurar o pão a quem o não consegue ganhar todos os dias. Ponto.

Ajudar as famílias é a primeira obrigação do Estado. A obrigação absolutamente urgente e inadiável. O seu dever moral e institucional primordial. Não é legislar sobre abstracções, orientações de género ou a morte forçada de intra-uterinos e idosos.

O Estado, ou é o absoluto contrário e existe para salvar a vida das pessoas, ou as pessoas descartam-no. E é assim que começam as revoluções.